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Dos caminhantes em viagem



Sou céptica. Descrente. Quase cínica. Não vislumbro finais felizes. Não acredito num local que me faça aninhar, me dê suporte, me afague, escute, entenda as discrepâncias dos meus vários tons, das minhas mudanças de espirito qual meteorologia dos Açores. Ainda que receptiva a novos mundos, dificilmente a falta de fé é recomposta depois de tanta erosão emocional. 

E, no entanto, há momentos que nos fazem pensar. Murros no estomago. De pensar, entramos em espiral quase obsessiva em torno de algo que pode ser irrelevante. Porque nos tocou, nos fez acordar da letargia, porque põe tudo em perspectiva mesmo no mais frio dos ecossistemas. 

Pessoas com lucidez, com coragem, com capacidade para amar uma mulher, querê-la, lutar por ela e pela oportunidade de a valorizar , de a elevar, de a envolver num longo abraço que a fortalece, protege, a motive a ir mais além com uma mão que a ampara e a celebra. Parece impossível, certo? Irreal? Inconcebível?  Sei que não acredito. Que apenas me resta esperá-lo noutra vida, nem que seja por casualidade. Mas existe. Há quem tenha em si essa capacidade de sentir, de dar-se, de amar livremente e sem pudor e apenas desejar estar com quem se ama. Afortunado destinatário de tal entrega. 

Como será estar na mira de tanta certeza? Como será sentir o calor que emana de alguém que nos dá asas para voar, chão para cair, uma cama para descansar  e prazer sem limites? Como será ter alguém que em plena lucidez, determinação, paz interior e segurança se permite à loucura de nos querer, não recear demonstrá-lo e sem pejo o afirma, o manifesta, o realmente busca?

É bom ter amantes com quem discutir Churchill, Woody Allen ou Jonas. É reconfortante ter amantes que nos fazem estremecer e perder o folego e suar de pura luxuria. Mas até quando isso chega? 

Somos corpos em comunhão. Risos nervosos ou carregados de delírio. Copos de vinho e cigarros madrugada fora. Confidências. Gemidos. Uma falsa ilusão de que não somos tão sós como, no fundo, sabemos que afinal o somos. Vagueamos nesta solidão, num vazio que nós próprios aprofundamos como se fosse a derradeira solução. 

Estar só é libertador, por tal, sejamos solitários antes que corramos o risco de de nos expor, de nos assumirmos que podemos, e queremos, ser um mas num espaço a dois em que cada parte se mantem individual mesmo que actuando em tango.

Somos civilizados. Somos adultos. Mas perdidos. Aceitamos contentar-nos com pouco mais do que nada. Ou mantemo-nos orgulhosamente sós para não revelar que há uma vulnerabilidade intrínseca que  não sabemos explicar. 

E, no final, o que queremos é alguém que nos devolva o querer sem medo de gritar em plenos pulmões que sofre com a nossa ausência, que discuta com paixão, que partilhe do mesmo comodo silencio, que despolete a luxuria ao simples e mais suave dos toques.

Não vivê-lo, não experienciar esta química que se perde na tradução, este magnetismo, é um fracasso? É sinal de uma vida inacabada, banal, mesmo que preenchida e rica em diversos focos de interesse? 

Será triste conceber que vamos deslizar toda uma existência sem esta espécie de fogo de artificio misturada com mousse de chocolate negro? Sem uma musica unica, vibrante, que nos electriza e nos faz tremer as pernas? Sem a sensação do primeiro mergulho no mar em dia quente? Sentirmo-nos vivos, amados, apaixonados por nós, pelo que se desenrola à nossa volta.

É desconsolador sentir que tal não acontecerá. Por isso é mais fácil vestir a armadura que não somos propícios a isto das relações, que não estamos destinados a esse sinal discreto de burguesia, que somos livres e agradecidos. Assim, não admitimos que o mundo nos ignorou. Que um raio de magia nos passou ao lado. Que não somos dignos de ser importantes para alguém mais. Que quem passa na nossa cama é apenas um caminhante em viagem. E nós não sabemos como gerir permanência. Não é o nosso ADN.   

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