"Tocou-me no pescoço com a ponta dos dedos, desviou
com 1 gesto macio a madeixa que lhe tapava o caminho e beijou-me com lábios
quentes, como se me possuísse naquele momento. Bastava senti-lo perto e ficava
pronta a recebê-lo. E ele estava muito perto, na mesma cama onde havíamos caído
horas antes para mais uma vez nos perdermos. Terminávamos sempre por nos achar
nos braços um do outro. Eu encontrava uma calma momentânea que seguia ao
rebuliço que ele provocava. Nunca chegarei a descobrir o que ele encontrava,
para além da ternura infindável em que adormecia. Exausto, sucumbia com
facilidade sob as carícias que lhe fazia no cabelo ou as massagens suaves nas
costas.
Abraçou-me por trás e prendeu-me as pernas, ainda
que soubesse que eu não iria fugir. Eu escondia sempre todas as emoções que ele
suscitava em mim, mas ele tinha consciência que dominava os meus sentidos, da
mesma forma como dominava todos os aspectos da sua vida, como dominava as
conversas em que entrava. Como controlava o que sentia, nunca revelando.
Dois amantes passionais e breves que davam tudo no
combate mas que nunca abriam a fachada. Jamais saberia o que ele sentia por
mim. Ele não o mostrava.
Ora me acolhia com real prazer exibido sem pudor,
acariciando-me a alma com o modo delicioso como me olhava, transmitindo tanta
esperança em cada beijo depositado na minha boca e como me embalava ao meu
ritmo, acabando aninhado, inconsciente, no meu colo. Ora desaparecia, sem
rasto, num autêntico acto de crueldade, exprimindo ou dúvidas, ou culpa, ou indiferença,
revelando, a mim, o quão supérflua
sou numa vida organizada em torno dele mesmo e de quem com ele partilha mais do
que instantes apaixonados.
E
eu sem me conseguir desligar. Sem deixar de ceder. Sem deixar de ter a vontade
de ver nascer o dia, nua, deitada sobre ele, na janela do meu quarto que dá
para o Tejo. E ele pegava na minha mão, pequena na dele, e puxava-me para ele:
“Vamos, linda, vem dormir”, e eu a teimar a ficar ali, a guardar aquela luz
para as noites em que adormecia sozinha sem ousar pensar onde ele estaria
nesses momentos.
Não o vivia com a intensidade do meu primeiro amor, como
o primeiro não há outro. Tão sofrido, tão meu, tão diariamente sentido. As saudades
que praticamente me puseram louca, o estado de sombra pálida em que me havia
tornado, o desalento, eram cenas de um cenário já longínquo ainda que apertado
em mim.
Não, este era o espaço que deixei uma paixão ganhar
após o luto prolongado em que retemperei forças. De uma atracção feroz, com
desejo mal contido a clamar por satisfação urgente, aliada a gargalhadas e
conversas que acabavam em roupa caída à medida que a vontade se tornava
avassaladora, progrediu para um estado mais apurado de envolvimento. Precisava
de estar com ele, por me sentir confortável na presença dele, ainda que ao mesmo
tão mal, porque era sempre disfarçado, com olhares à distância. Adorava
repousar naqueles braços tão preparados para me receber, a tremer, com mãos
experientes e carinhosas a comprimir-me contra o peito dele, 2 corpos suados,
sedentos e conhecedores um do outro. Navegávamos ao mesmo ritmo, pela noite
dentro, sempre com um CD a tocar para que não estivéssemos tão sozinhos, a dar a
ilusão que realmente algo mais existia para lá dos encontros à laia de
escapadelas, cada vez mais intensos, cada vez mais recorrentes mas que cada vez
mais eu vivia como se fossem os últimos.
Temia
sempre ser a última oportunidade de me encostar àquele corpo que se tornara
familiar, àquela voz que cantava baixinho as músicas que eu tanto gostava,
sabendo que isso me deixava tranquila e calma. Sempre que estávamos juntos,
achava que ele não iria sucumbir e vivia uma luta entre manter a pose serena e
dissimular a ansiedade por o ver partir sem mim. Conseguia seduzi-lo mas a
novidade esgotara-se e estava em constante alerta para o momento de ele se
esgotar de mim. Ele já tinha quem o completava, em mim encontrava apenas uma
paixão derrubadora que não era alicerce de coisa alguma.
Procurou
a minha boca e beijou-me devagar, para me despertar. Daqui a pouco já estaria
em cima dele, a consumi-lo em doses mais rápidas, tentando mostrar-lhe o quanto
eram importantes aqueles minutos que davam lugar a horas, parecendo sempre
pouco.
Fitei-o
com a minha agressividade natural, a mesma que tenta esconder as fendas que ele
abriu no dia em que o deixei aproximar-se. A minha bravata face à ousadia dele
saiu-me cara e eu pagava mais uma rodada num balcão já gasto de histórias tão
erradas como constantes.
Fingiu-se
assustado. Riu-se em seguida e abraçou-me com tanto carinho que jurei poder ser
verdadeiro. «Lá estás tu longe daqui! Diz-me!». «Não é nada», respondi,
beijando-lhe os olhos em cuja claridade me via reflectida, solta. «Cheiras
bem!», aquele aroma que se colou a mim e que já não conseguia esquecer.
«Mais uma fuga à conversa»,
puxou-me mais com a determinação de um conquistador. «Em que pensas?»
«Nada, a sério», beijei-lhe o
peito com a intensidade que enchia as medidas aos dois e ele repousou a
necessidade de me ter outra vez, dando-me a mão, cruzando os dedos com os meus
de forma tão erótica como nossa, como se fossemos heróis de um filme. Não era
nada de especial, era um grande tudo único. Era uma sucessão de instantes
cortados por conversas até de madrugada com cigarros a iluminar os vários panos
de fundo que nos foram acolhendo em noites sucessivas mas interrompidas.
Devia
ter parado algures. Devia ter cedido ao meu orgulho, exigir a plenitude,
demandar a presença e não deixar passar muda e queda a ausência. Mas todas as
questões que assomavam na minha mente eram afastadas com o toque do telefone,
com os concertos no CCB, com os fins-de-semana em turismo de habitação. As
minhas inquietações, as noites mal dormidas a remoer o mal que me andava a
fazer, eram amenizadas quando ele regressava com um CD novo, sorriso matreiro
que se encostava no meu cabelo
paradepositar um sussurro em que soltava o meu nome. Não era
capaz de o afastar; sem pesos de consciência recebia-o à minha maneira, com
esperança que fosse novamente bom.
Habituei-me
a que depois se retirasse para o seu mundo. Eu ficava à deriva. Odiava-o
Rasgava os bilhetes das peças de teatro, os cartões dos restaurantes, apagava
os emails. Saía com outros, cheguei a partilhar a cama com amantes antigos,
outros novos. Nunca lhe disse ele também não se preocupou. Ficava tudo bem: ele
voltava com conversa rápida, nervosa e eu expectante por o ter ali, senti-lo
dentro de mim como da 1ª vez, na praia. Rasgos de felicidade à socapa, soltos
como gemidos, que furavam a minha postura distante e egoísta. O olhar
endurecera ainda mais perante a constatação de como tudo era efémero. E cerrava
as fileiras perante ele para que não percebesse como tinha significado e, ao
mesmo tempo, era tão simples, como o génio da Maria João Pires que eu ouvia sem
cessar e que ele aprendeu a gostar.
“Gosto de ter aqui”, pensei, receosa que a força desse
sentimento fosse de tal modo forte que se ouvisse fora de mim. “Gosto do sabor
da tua pele contra o meu calor e como desapareço quando te fechas sobre mim”.
«Em que pensas?», volta ele a
perguntar sem desistir, mas já sem esperar resposta, enquanto me revolve o
cabelo, me beija os mamilos, fazendo-me arquear as costas em mais um abandono
de prazer. Não respondi, observei-o com deleite, enquanto de olhos fechados ele
me percorria o corpo com ardor, a sofrer por estar prestes a terminar.
E
eu sem poder responder. Encostei-me mais a ele quando me procurou, a lua
entrava de mansinho pela janela do quarto, de braço dado com a brisa que
refrescava a divisão. Abri de novo os olhos e fixei-os no espelho colocado à frente
da cama com lençóis perdidos e onde consegui ver a espiral de incertezas, nó na
garganta, arrepios na espinha e solidão.
Foi essa
solidão que ficou quando ele saiu, horas depois. Com esse tecido pesado e
transparente colado a mim, aninhei-me num canto da cama, no total silêncio.
Deixei-me estar assim, isolada de tudo durante dias, acompanhada apenas da
minha própria força. Não chorei, não me vesti, fumei, mal comi, embrulhada em
recordações num processo de desintoxicação emocional. Revi as fotografias
coladas num único álbum, escondido num armário e pensei no quanto tempo me
afundei em momentos em vez de viver. Por fim, tomei um banho demorado, coloquei
Beatles na aparelhagem, com as músicas de tom optimista e da cor de um sorriso
qualquer, e nunca mais te vi. Quase não insististe para regressar ou porque
percebeste que eu tinha atingido o limite da minha paixão por ti ou porque não
te apeteceu recuperar-me.
Foi mesmo
efémero. Foi duro. Foi um corte em mim, um que sabias sempre sarar. A ferida
agora está aberta. Mais outra. Talvez a última."
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