Avançar para o conteúdo principal

À distância de uma janela

Da janela do quarto, de onde não saía, via quer o sol que batia nas copas das árvores, quer a chuva que silenciava tudo em redor.

Confinado à cama e ao pequeno sofá desconfortável junto à janela, observava os dias a passar ao ritmo do calendário de pessoas que não conhecia. A sua vida desenhava-se pelos os actos dos outros, sob os seus olhos.

Perdera aos poucos o gosto pelo cinema, nem sequer dava uso ao DVD em segunda mão que lhe tinham arranjado. Custava-lhe a ler, perdera a concentração, mas insistia em manter-se seduzido pelo génio dos que podiam permitir-se a usar a folha branca como uma obra de arte.

Mal comia, o apetite esvaíara-se com o tempo. Mastigava qualquer coisa só para acalmar o estômago.

Não tinha visitas. Isolara-se na sua solidão por não conseguir explicar as suas dores. Até os mais insuspeitos o haviam enganado e isso também doía.

Pessoas que haviam aparecido na vida cheios de boas intenções, mas que tinham desaparecido sem rasto, entre afazeres e novos amigos. Adultos que se comportavam como crianças usando outros adultos como se fossem brinquedos, aos quais se acha muita piada momentaneamente e depois perdem o sabor a novidade.

Não compreendia, mas desistira de lutar contra as evidências e rendera-se à tortuosa natureza humana, em paz consigo.

Sozinho, descobrira que sempre estivera assim. Não fora a doença que o confinara a si próprio. Desde pequeno que, apesar de rodeado por tantos, sempre se sentira mestre do invisível. Sentia que nunca ninguém o entendera, o escutara ou o vira, de facto.

Todos aqueles anos, sabia que não passava de um ser a mais, que não cabia nas fotografias, alguém anónimo que estando ou não, era facilmente esquecido.

Não conseguia dar-se.

Distante, habituara-se a ouvir os outros, enquanto a mente divagava sem grande rumo quando as conversas não lhe alimentavam a curiosidade interior. Tornara-se hábil em esquivar-se às pessoas, desistira de consumir-se com desilusões.

Veio a doença e foi forçado à reclusão que, de temporária, por não ser combatida, passou a contínua. Sentia-se mais preenchido em observar as vidas que passavam pra' lá da sua janela. O lado humano revelava-se todos os dias ao seu olho critico.

Todos os dias este ritual dava-lhe alento.

Nunca construíra pontes, estava preso a uma das margens e não tinha barcos nem remos. A sua única bóia, a única pessoa que o havia ganho, e o trouxera para fora das cortinas onde se escondia, fugira-lhe de forma dolorosa. Aí, as suas resistências voltaram apertar-lhe a carapaça e perdera-se o encanto.

Não era triste. Acordava diariamente com expectativas, só que diferentes das dos outros. Nem eram ambiciosas, Vivia cada dia como se fosse mais um dia.

Sem deslumbre, sem magia. Sem fins de tarde com um pôr de sol que só pede silêncio, sem contemplação do rio ao som de uma ligeira brisa, sem a troca de gargalhadas com amigos.

Não estava triste. Apenas não via a beleza nem sentia a força de ter alguém que gostasse de si e o entendesse.

Felizmente, tinha aquela janela que lhe prolongava a ilusão.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os lambe-cus (MEC)

Os Lambe Cus, by Miguel Esteves Cardoso   "Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele. Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá- los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia. Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alun

Devo ser a unica mulher

Que gosta do Mr. Big. Pois que gosto.  Enquanto a Carrie era uma tonta sempre à procura de validação e de "sinais", a complicar, a remoer, ser gaja portanto, o Mr. BIG imperfeito as may be era divertido, charmoso, sedutor, seguro (o possível dentro do género dos homens, claro), pragmático.  E sempre adorou aquela tresloucada acompanhada de outras gajas ainda mais gajas e mais loucas.  Fugiu no dia do casamento? Pois foi. Mas casaram, não casaram? Deu-lhe o closet e um diamante negro.  Eu gosto mesmo muito do Mr. BIG. Alguma vez o panhonhas classe media do Steve? Ou o careca judeu que andava nu em casa? Por Sta. Prada, naooooooooo! 

Do acosso

Este calor que se abateu com uma força agressiva consome qualquer resistência.  O suor clandestino esbate vergonha e combate qual sabre as dúvidas.  A noite feita à medida de libertinos cancela as vozes interiores que alertam para mais uma queda dolorosa. A brisa quente atordoa, embriaga no contacto com a pele. O tempo pára, as palavras suspendem entre olhares que sustentam no ar tórrido toda a narrativa; qual pornografia sem mácula, mas plena de pecado. A lua cheia transborda e dá luz à ausência de sanidade que percorre no corpo. Tudo parece possível, uma corrente de liberdade atravessa-nos com o sabor do quente esmagado. E, mesmo assim, pulsa algo mais intenso. Mais derradeiro. Mais dominador. Mais perverso que o toque dos dedos. Mais agressivo que a temperatura irrespirável. O freio da impossibilidade.  A intuição luta com o medo e na arena o medo mesmo que picado tem sempre muita força. O medo acossa-nos.