Avançar para o conteúdo principal

É Natal, meu amor

Recordo-me de como dizias, quando jogávamos à apanhada, que um dia aquele meu sorriso seria teu. Que mo roubarias e que ele seria o teu farol, tal como eu seria a tua mulher. E eu ria-me mais, achando-te tonto, desajeitado, com pouco talento para jogar à bola, ainda que tentasses.
Recitavas-me parágrafos inteiros d' Os Maias que sabias que eu adorava, lias-me poemas às escondidas e perseguias-me com o olhar sempre que eu passava na rua. Os outros comentavam o balouçar das minhas ancas sobre as pernas torneadas pelas aulas de dança, mas tu consumias-me em doses de doçura, à distância.
Conheço-te desde pequena, conheço-te desde sempre. Foste sempre o único que me fez as vontades com eterno conforto. Era a única rapariga no meio de quatro irmãos. Todos com a natureza do sucesso escrita no DNA, numa família que revia em cada um deles a hipótese de recuperar o brio de uma história de burguesia endireinhada que fora decaindo, na casa grande, senhorial, com quartos fechados, não ocupados, e com pó, tal como tantos episódios dos nossos antepassados.
Nesta mística e luta pela sobrevivência dos apelidos, eu só dava problemas. Queria dançar, pintar e correr pelo campo, chegando à noite com os cabelos desgrenhados e pés sujos de andar descalça. «À cigana», como era recebida, sem direito a jantar e indo directa para a cama, de castigo. Exasperava os pais, era ignorada pelos meus irmãos, as empregadas achavam-me um raio de alegria mas um tremendo estorvo, tamanhos eram os meus devaneios.
O mundo sempre foi pequeno demais para mim. Mas tu entendias. Tu querias abraçar-me quando eu fugia. À media que crescíamos, eu atirava o cabelo escuro, tão negro profundo, tal como era a minha insatisfação, sempre disfarçada pela gargalhada, aparentemente fácil.
Mantiveste-te sempre por perto e, inconscientemente, eu não me mantive longe. Viste-me descobrir o poder do corpo com outros. Viste-me ser usada sem me importar. Só queria fragmentos de afecto. Viste-me procurar a satisfação sem pudor, numa época de libertação instituída a nível nacional.
E eu via-te, de forma afastada, cada vez mais homem, mais seguro, mais observador, melhor em tudo, melhor que todos os outros. Sabia que farias sempre qualquer mulher feliz, que a trarias para um mundo novo de curiosidade intima e adornos de paixão. Mantinhas a tua devoção mas já não ma davas, tratavas-me na medida certa, na proporção de amizade e paciência.
Um dia, acordei, olhei o tecto, lembrei-me de como tínhamos conversado até de manhã, de como partilhámos a garrafa de vinho tinto que havia restado da velha adega, depois dos meus irmãos terem vendido a casa senhorial, mal ficámos órfãos. Lembro-me de como nos rimos a recordar como o avô era exigente nas vindimas e fazia aquele vinho com dedicação e orgulho. Tinha sido bom. E quando olhei para o lado, no silencio do quarto quente, estavas lá tu a dormir com ar tranquilo e com a tua mão nos meus cabelos.
A partir daí foi fácil. Passaram 30 anos. Mudámos de casa, de cama, tivemos filhos a dormir no meio de nós, e cães devotos a entrarem como donos do quarto. Mas mantens o mesmo hábito de adormecer com a mão nos meus cabelos, já menos negros e mais grisalhos. Nenhum de nós os disfarça. Representam que vivemos juntos todas as fases da nossa vida. Até o sermos avós.
3o anos de proximidade suave e indolente como lençóis novos acabados de pôr, 30 anos de toques que arrepiam como a primeira chuva de Setembro, 30 anos de um universo cheio de pontos de referência e confissões, mãos dadas e passos entrelaçados. E se a minha alma continua um remoinho, tu continuas a ter essa tua expressão em paz consigo mesmo quando dormes.
É Natal, temos a casa cheia de filhos, genros e noras, cunhados, sobrinhos e crianças. E os nossos cães, já velhinhos mas cheios de genica pela animação reinante no lar feito por nós.
Mas para mim, é como só tu existisses porque sem ti nada disto seria real. Se me amaste desde cedo, desde sempre, por seres precoce em perceber o óbvio, eu amei-te mais tarde mas com tal intensidade que me preenche, que me completa, que me faz ser melhor.
É Natal, meu amor. Não poderia querer-te mais. E o meu sorriso há muito que é nosso.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os lambe-cus (MEC)

Os Lambe Cus, by Miguel Esteves Cardoso   "Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele. Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá- los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia. Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alun

Devo ser a unica mulher

Que gosta do Mr. Big. Pois que gosto.  Enquanto a Carrie era uma tonta sempre à procura de validação e de "sinais", a complicar, a remoer, ser gaja portanto, o Mr. BIG imperfeito as may be era divertido, charmoso, sedutor, seguro (o possível dentro do género dos homens, claro), pragmático.  E sempre adorou aquela tresloucada acompanhada de outras gajas ainda mais gajas e mais loucas.  Fugiu no dia do casamento? Pois foi. Mas casaram, não casaram? Deu-lhe o closet e um diamante negro.  Eu gosto mesmo muito do Mr. BIG. Alguma vez o panhonhas classe media do Steve? Ou o careca judeu que andava nu em casa? Por Sta. Prada, naooooooooo! 

Do acosso

Este calor que se abateu com uma força agressiva consome qualquer resistência.  O suor clandestino esbate vergonha e combate qual sabre as dúvidas.  A noite feita à medida de libertinos cancela as vozes interiores que alertam para mais uma queda dolorosa. A brisa quente atordoa, embriaga no contacto com a pele. O tempo pára, as palavras suspendem entre olhares que sustentam no ar tórrido toda a narrativa; qual pornografia sem mácula, mas plena de pecado. A lua cheia transborda e dá luz à ausência de sanidade que percorre no corpo. Tudo parece possível, uma corrente de liberdade atravessa-nos com o sabor do quente esmagado. E, mesmo assim, pulsa algo mais intenso. Mais derradeiro. Mais dominador. Mais perverso que o toque dos dedos. Mais agressivo que a temperatura irrespirável. O freio da impossibilidade.  A intuição luta com o medo e na arena o medo mesmo que picado tem sempre muita força. O medo acossa-nos.