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A surpresa de se amar

O Sol estava tão quente que escaldava até na sombra onde nos recolhíamos. Lembrava-me dele. Tínhamos partilhado uma história daquelas que unem em silêncios os estranhos, divididos entre o riso, a consternação e o abanar de cabeça mental.

Era uma noite fresca e calma, a primeira noite das férias e sentia-me feliz no desconhecido.

Descia para o centro da vila pitoresca onde me refugiara com o protector solar e os óculos de sol a defenderem-me do mundo. Ao passar numa rua menos iluminada, a caminho das esplanadas, cruzei-me com ele que saía de uma pensão algo rasca. Ele deu-me primazia no passeio e foi aí que ouvimos os gritos que o seguiam.

A namorada, que há uma hora o deixara de ser, fazia a derradeira despedida de mochila às costas e soltando na direcção dele os maiores impropérios. De veias salientes no pescoço, abandonava a compostura com o abandono da relação e a incompreensão pelo factor surpresa.

Envergonhada por uma vergonha que não era minha, segui o meu caminho enquanto o observava continuar por outra rua, impávido nos jeans pretos gastos e uma camisa também negra, demasiado arranjado para aquela cena, demasiado sereno para quem cortara com o passado.

Encontrámo-nos, então, à sombra, na praia, eu a ler de cabelo molhado, ele a a rabiscar de corpo a ganhar bronze. Pedi-lhe lume, num sinal de tentativa de compreensão, e não mais deixámos partilhar o isqueiro e a companhia. Ele passava os dias a escrever sob o meu olhar curioso e ausente, a voar longe. Ele dizia-me "gostava de saber música para te encontrar" e eu adorava.

Sucumbimos de tal maneira que deixava de fazer sentido estarmos apartados. O inicio de Verão quente deu lugar a semanas de puro enamoramento, com mergulhos na solidão do lago, e manteve-se até hoje, quando o Verão ainda está a terminar.

"Queres casar comigo?", saiu natural. Ele escreveu o texto que me quer ler no casamento. Eu escolhi um vestido curto e inocente, em tons pastel, algo kitsch. Não temos data. Não temos pressa. Somos os desalinhados com o contexto, uma história de amor descomplicada mas com actores que teriam tudo para dar cabo deste idilio, tal era o peso que trazíamos às costas.

Somos um tandem em experiência. Estamos juntos nesta viagem. E o Sol continua quente.

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