Sim, é verdade, fugi. Escapei-me sem que desses por isso
e fechei a porta; antes ainda te olhei uma última vez porque apesar de não saber porque partia e que força era aquela que me empurrava, sabia que te
queria.
Também já te tinha abandonado tantas outras vezes.
Seguramente que reparaste e foste-te sarando as feridas ao ar sem tratamento
porque não me redimi.
Quando te deixei à espera para jantar porque prolonguei
telefonemas com amigos sem me lembrar de te avisar que me ia atrasar apenas por
estar a por a conversa em dia. Quando tu aninhada a mim me provocavas, a quente, e eu parava, de forma desinteressada, para dar atenção ao telemóvel com temas
não prioritários de gajos. Quando te deixava num local e arrancava sem sequer
esperar que atravessasses a estrada. Quando saíste a primeira vez da minha
casa, numa madrugada fria, com Uber ainda por chegar, e que apesar de pleno
pela pessoa que eras, certo que te adorava, mas nem sequer me levantei para te levar à porta.
Somos algo bestas. Os homens. Mesmo quando gostamos.
Damos por garantido que tudo é nosso e para sempre e que nada tem que mudar porque
a outra pessoa está lá incondicional. Gostamos de forma violenta. Gostamos
mesmo. É real. Mas não sabemos o que fazer com esta queda de emoções que nos
torna mais desprotegidos, menos lúcidos e que nos desafia, a cada momento, o
controlo.
O que vocês querem? Quando ganharam esse tom de voz duro?
E essa postura directa e cheia de si? Quando é que conseguiram a lata de acordar
viradas do avesso? De onde veio esse músculo de autodefesa que nos riposta com
um olhar que minimizamos como se fôssemos altamente seguros mas nos despedaça
em mil dúvidas?
A tua vulnerabilidade sempre se escudou numa força e
determinação tais que me permitia cumprir o papel de protector mas consciente
que sobrevivias mais e melhor e me levarias às costas por entre labaredas, se
necessário. Quis-te infligir dor por isso. Por estares à deriva mas não teres
medo da ausência de bússola. Por caíres e levantares-te, a custo, mas voltares
a dar-te ao perigo. Por teres feridas e nem sequer saberes o que era um kit de
primeiros socorros. Por sucumbires ao prazer com uma faca debaixo da almofada.
E magoei-te. De propósito. Na pior das alturas para que o
golpe fosse mais letal, mais doloroso, mais calculado. A minha grande cena de
partida teve laivos de vitimização. E, depois, ignorei-te como se nada fosses.
No fundo, risquei a ardósia que eras tu com aquele som
perturbante que só tu ouviste e percebes-te. Vinguei-me de todo passado em que
fizeram a mim sofrer, menti, falsifiquei o cenário, usei-te como escape para
esta incapacidade de sentir-me alvo de amor. Merecedor. Impus-te a espada para
que quebrasses de modo q sentir-me dono de mim, da verdade e da miserabilidade.
Eis o teu valor: fizeste-me gostar, agora derrama martírio.
Choraste? Muito? Perdeste as certezas? Confirmaste que
somos todos uns animais? Sentiste que não tens direito a nada de bom? Finalmente tiveste o teu direito a dizer palavrões.
Sim, é verdade, vocês são perigosas. Nós somos cruéis com
quem nos estende a mão.
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