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Do despeito




De repente, de forma violenta e árida e dolorosa, senti a tua falta.

Terá sido a música que tocou inusitadamente no jantar e que me lembrou noites de chuva no teu corpo ávido por ser possuído? Terá sido a piada que a rapariga desconhecida contou à mesa e que me recordou o teu sentido de humor acutilante e directo ao osso? Terá sido o perfume que alguém deixou no ar quando passou na sala e me levou aos momentos em que encostado a ti aspirava o teu cheiro cruzado com os aromas que escondias por ti, ansiando beijos?

Despertei de modo abrupto para a tua ausência. Naquele instante queria-te ali, ver-te passar com sorriso irónico e saber-te minha. Ter noção que estavas atenta a mim por muito que parecesses focada em tantas outras coisas. Passares a mão descontraidamente pela minha com promessas de desejo mal contido, de luxúria a dançar atrevida nos olhos, de conversar até raiar do sol contigo encostada a mim.

E, não, não estavas ali. Nem estarás quando chegar a casa, para me abraçares sem perguntas apenas com proteção, com manto de carinho e calor e sem nada pedir em troca, excepto reciprocidade do mim em ti. Não estás porque deliberadamente te convidei a ir. Não estás porque não te quis mais. E lembro-me de tomar essa decisão. De a ver clara como água e de ter continuado como se nada fosse.

Porém, trago-te presa a mim desde então. Não te quero no mesmo passeio em que eu caminho mas a tua existência não se desvanece. És incompatível em mim, não te consigo ter apesar de te sentir a pulsar como se fosses uma realidade constante.


Que punição esta que escolhi para não ter que lidar contigo, indomável, que nunca compreendi em pleno, que me atormentava por não conseguir decifrar. Deste-me medo. De seres maior do que poderia controlar. E de te desapontar. De perceberes, uma manhã, ao acordar, que eu não bastava, que não estava à altura, que não acompanhava a tua voracidade. O meu despeito foi forjado num receio dilacerante de que se me descobrisses com esses teus olhos que perfuram, nada restasse. E por muito que o teu aroma me torture os sentidos não te quero próxima. Arrastei-te para longe.

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