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Quotidianos


Hoje vi o amor da minha vida. Na música a Mafalda Veiga pede para «guardar e abraçar tudo o que te dei» e as palavras colam-se-me à pele como dúvidas, pois hoje vi o amor da minha vida, vi-o ao de leve como ao de leve ele e eu, outrora, nos encontrámos. Não houve sequer tempo para nos abraçarmos daquela forma quente e estreita de navegar nos braços de quem se gosta, nem muito para guardar, são memórias demasiado pesadas para serem assumidas. Não nos lembramos um do outro e não há espaço para recordações com um sorriso.

Vi-o e por breves instantes não acordei para ele, não o reconheci sequer. Vi-o , apenas, amparado a quem ele pertence, passei por ele como voo de um anjo sobre o sono de uma criança, com passagem silenciosa, ténue, com carinho e cuidado. Passou hoje ele por mim como o encontro de dois estranhos, passámos e não ficámos, sem o dramatismo dos filmes, nem trocas de olhares cúmplices carregados de histórias que ficaram para trás. Foi um cruzamento vazio de significado, o mundo não tremeu, nenhuma borboleta bateu as asas, nada mudou excepto a tranquilidade que tenho por não deambular em mágoas, por não me ter atirado para o canto escuro da tua saudade, na saudade do amor da minha vida.

A minha vida continua sem ele, sem o amor do que foi, em tempos, a minha vida. Ele continua sem mim, sem a pessoa que o tornara centro de tudo, que o acariciava à distância, numa aliança de entrega, lágrimas, confidências e proximidade. Nele quis repousar, mas ele precisava de repouso sempre mais do que eu e roubava as dádivas para ele, querendo-me forte, atenta, sábia, amiga, cruel, verdadeira, acutilante, apaixonada por nós. E eu que só o queria com aquele sorriso solto e a piada constante com que iluminava mesmo os dias mais chuvosos.

E na doçura profunda dos momentos bons, retinha sempre tudo o resto e eu sabia que o amor da  minha vida, a qualquer momento, ia-me fazer penar por o ter assim em mim. A cada instante arrependia-me de estar ao lado dele, ainda que estivesse sempre à frente, acompanhando-o de longe, do outro lado da vedação que existia por natureza, criada pela ausência dele e por sina minha.

Hoje, no quotidiano banal, na rua fria deste Inverno rigoroso, por entre as pessoas que corriam para o almoço, meio escondida pelo sobretudo, aninhada no conforto do meu cachecol, prestes a alucinar mais um pouco nas suas exigências do que é agora a minha vida, despedi-me do amor da minha vida, arrancado das profundezas dos sonhos que tento apagar, enlutada por não ter vivido esse amor, que corre ligeiro para o amor de outro alguém.


Hoje vi o amor que já não é, e apesar de vitoriosa por lhe ter retirado o título, sinto intensamente a derrota de não o ter tido. Por muito que batalhe, essa entrada triunfal no estádio, pelo meio dos aplausos do público, o querer cortar a meta para ele me acolher e dar sossego ao meu cansaço, será sempre uma oportunidade que não tive.

Da próxima vez que vir o amor da minha vida, já não terei esta vontade insana de me consumir. Do amor da minha vida nada mais resta. A minha vida saltou aquele instante em que ele foi o meu amor e hoje só me tento equilibrar para não cair.  


(mónica pinheiro, autoria)

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