A manhã começou cedo, ainda escuro e já com ameaça de humidade semi outonal. Ainda não marcavam 7 horas no relógio de pulso desportivo que media pulsações, passadas e calorias perdidas, quando R. começou a fazer o aquecimento junto ao rio, com uma das suas mais amigas mais antigas. Ainda estava ensonada, mais uma noite sem dormir, atormentada por fantasmas, pesadelos, e estranhos fins sem solução.
No chão, lado a lado, uma garrafa de água e um copo de café. Mentalmente, R. preparava-se para os 12 km que tinha pela frente e já Sara contava, em total energia, o desgastante que era ser recém promovida numa empresa em contenção de custos, com uma equipa reduzida face ao que teria há dois anos, um chefe que não se comprometia e não se expunha ao risco da incompetência, a pressão constante de Espanha para ver resultados, as horas tardias de volta do PC, as discussões com o marido, João, para ver quem ia buscar os gémeos ao colégio ou aos sogros, dar-lhes banho e brincar com eles. Desde que João perdera, há um ano, o emprego e tivera que mudar de funções, estava numa fase profissional boa, mas ganhava menos, já não podiam ter a empregada interna e raramente ele estava em casa sequer para adormecer os gémeos. Ao quilómetro 8 começou o monólogo férias. Sara estava cansada, queria ir em Dezembro para fora nos feriados, mas sem os filhos. João queria poupar, tinha-se candidatado a uma formação pela empresa na Alemanha e recusava-se a ir de férias sem os filhos.
Quando terminaram, extenuada, R. já dera todos os conselhos que considerava oportunos. Sara deu-lhe boleia, perguntou-lhe como estavam as coisas com ela mas foi de pronto interrompida pela chamada da irmã para falar sobre o almoço de família e sobre as crianças. À porta de casa, abraçou-a, disse-lhe que era uma amiga fantástica, que gostava muito dela e que tinham que almoçar na semana seguinte. E o telefone tocou de novo. Era um Director espanhol.
R. tomou um banho, comeu iogurte com aveia e morangos, bebeu outro café, abriu portátil, viu os emails (nenhum novo), confirmou os planos de pagamentos de contas, chorou, vestiu-se e saiu para almoçar com o melhor amigo e a mulher.
Apesar de pouco sol, estava agradável numa esplanada à beira rio. Não estavam juntos há meses. Entre as férias à Argentina de David e de Rita, a nova casa em remodelação que tinham comprado por uma pechincha mas que só lhes dava dores de cabeça, as guerras com o tipo das obras e as idas e vindas ao Aki e ao Ikea, quase arrastaram R. para ir ver o apartamento em estado de sitio.
Safa pelo 4º aniversário do filho da sua amiga de infância, R. ficou no salão de festas do condomínio onde morava Ana, prestes a endoidecer com 15 crianças em pico de adrenalina e pais com falta de álcool. Ana estava imprópria para socialização, na primeira festa pós-divórcio, desesperada para que tudo fosse perfeito para Jaime, que sorria timidamente sempre que lhe davam mais um presente. O grupo de amigos do costume lá estava, já não se viam desde que Ana tinha posto Ricardo fora de casa (já que ele não saia nem por nada). Fora R. que se mudara para o enorme T4 e ajudara a empacotar as coisas, a redecorar, passara noites acordada enquanto Ana desfalecia em lágrimas que durante o dia não podia mostrar ao filho, que mediara a relação estranha pós separação, que aguentara os insultos de Ricardo quando Ana esteve dias a dormir, sedada. Misteriosamente, praticamente todos os demais haviam desaparecido. Não se queriam meter, divórcio, vicio do jogo, tudo muito complicado. E agora reinava uma parede entre elas. R. não lhes perdoava.
Ao fim do dia, cansada de tanto ruído e correria desenfreada de crianças em full power, passou por casa de Sofia, sua antiga colega de trabalho. Tinham ambas ficado desempregadas ao mesmo tempo. R. começou a trabalhar como free lancer pouco depois, Sofia abriu um negócio próprio que veio a falhar. Na mesma altura descobriu que estava grávida e o namorado de quase 4 anos desapareceu tão depressa como os clientes. Os pais deceram-lhe um pequeno apartamento que tinham fechado e entre Sofia, o irmão e R. arranjaram.no todo. O verão faz "magia" e os amigos de Sofia tinham coisas mais giras que fazer. Afonso nasceu prematuro mas lindo de morrer e R. deliciava-se em adormecê-lo ao fim do dia, deixando Sofia descansar. Depois era a vez de Sofia abrir as comportas e desfiar o rosário visto estar tanto tempo sozinha com um bébe.
O "ex" ainda nem sequer tinha manifestado interesse em vir ver Afonso mas mandava a mãe e ela não a queria lá em casa; o irmão ia voltar para a quimioterapia porque não tinha havido melhoras. Era um carrocel emocional. Ora, a alegria que Afonso trazia, ora a debilidade do irmão. Ainda bem que tinha R. para a ouvir, apoiar e lhe dar força. Tinham que se dedicar um dia a falar só sobre R. Parecia que nunca o faziam, mas era só uma ilusão, quando há bébes o tema torna-se absorvente.
Já noite, em casa, sentada na varanda do 8º andar, R. percebeu que esteve todo dia sozinha. Acabou o copo de vinho e olhou o céu anormalmente estrelado. Ao contrário daquele tecto, que servia de inspiração para alguém, ela não existia.
E, sem mais demoras, deixou-se cair na noite vazia.
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