Avançar para o conteúdo principal

Palavra a palavra, um mundo mais fácil





"Nos anos decisivos da minha vida, passei muito tempo em casa da minha avó, que não era, digamos,, uma pessoa exuberantemente afectuosa. Não era dada a beijos e abraços. Sucede que talvez por isso, eu também não sou uma pessoa exuberantemente afectuosa. També não sou dado a beijos e abraços. 
Quando quero explicar a uma pessoa que gosto dela, tenho de recorrer a outros estratagemas. A minha avó cozinhava. Ou esperava-me por mim à janela. Eu digo coisas. Deu-me para isto. Faço tudo o que é importante com palavras, porque não sei fazer doutra maneira."

(crónica de Ricardo Araújo Pinheiro, in Visão 29 de Setembro 2011)


Este texto já tem mais de uma semana e eu achei-o amoroso.

O RAP usa a piada como usa a palavra: como recurso e escape de quem não sabe  agir de outra forma. Ele fala várias vezes desta avó tão estrita que o fez desenvolver o jeito para a macacada para lhe arrancar um sorriso. Como se isso provasse que ela gostava dele, que ele ganhara a sua afeição ao estilhaçar-lhe as defesas.

Colocando de lado as questões do acordo ortográfico ou da ligação especial à avó (dado que nem conheci as minhas) este excerto tocou-me, mesmo, o que é uma coisa digna de Clap Clap.

Com o passar dos anos, nunca sei se é suposto ficarmos mais brandos e suaves com os outros, mais beira de mar à espera de ondas que nos beijam ao de leve, ora sim, ora sim. Ou, se mais batidos com os costaços nas pedras, ficamos mais intolerantes e frios perante os demais.

Independentemente do que é expectável das pessoas "normais", a minha personalidade ganha liberdade criativa nos momentos mais inesperados  e cada vez é-me mais difícil lidar com as emoções (tristeza, alegria, decepção, paciência, confronto com a estupidez, egocentrismo, facilitismo emocional, dependência, lições de moral, tédio, vadiagem mental) sem que exista uma vontade, nem por muito pequena que seja, de desatar aos berros, de dar meia volta e deixar as parvoíces ocas dos grandes discursos desenharem-se ridículas no ar e autoexcluir-me, autosilenciar-me, autoflagelar-me com a reclusão.

Secam-se os afectos. Os maus e os bons. 


É muito pesado esticar o braço para um carinho, um gesto demorado no rosto de alguém. Um abraço sentido desconcerta-me. Quase que me tira o ar. Dou por mim não perceber actos de simpatia de outrem, a não os descodificar, a demorar a entendê-los e a ter alguma tendência, quando os descortino, a analisá-los à lupa à procura do "catch". Pois, sim, estou na rota do cinismo. 


O que mudou mais em mim, como pessoa, foi passar a depender muito mais das palavras para "chegar lá", para contornar bloqueios que engordam a cada dia. Um beijo, antes fácil de se soltar, é hoje demasiado precioso, demasiado intimo, demasiado encostado à parede, e não sai com naturalidade. Tudo custa mais. Mas muito menos custa o encontro de várias palavras que fluem, se encontram, se abraçam, dançam entre si, contentes ou menos felizes. 


Assim se diz tudo. De forma leve, mais dura, a rir, ou com lágrimas. Tudo se faz com palavras. Até nós.




Comentários

Mensagens populares deste blogue

a importancia do perfume e a duvida existencial do mês

Olá a todos advogo há bastante tempo que colocar perfume exalta a alma; põe-nos bem dispostos e eleva-nos o bom espírito. Há semelhança do relógio e dos óculos de sol, nunca saio de casa sem perfume, colocado consoante a minha disposição, a roupa que visto e o tempo que está. Podem rir-se à vontadinha (me da igual) mas a verdade é que sair de casa sem o perfume (tal como sucedeu hoje) é sempre sinal de sarilhos. nem mesmo umas baforadas à socapa no táxi via uma amostra que tinha na mala (caguei para o taxista) me sossegaram, ate pq não era do perfume que queria usar hoje. E agora voltamos à 2ª parte do Assunto deste email: duvida existencial do mês Porque é que nunca ninguém entrou numa loja do cidadão aos tiros, tipo columbine, totalmente alucinado dos reais cornos? É porque juro que dá imensa vontade. Eu própria me passou pela cabeça mas com a minha jeiteira acabaria por acertar de imediato em mim pp antes de interromper qq coisa ou sequer darem por mim. lembram-se de como era possív

Do acosso

Este calor que se abateu com uma força agressiva consome qualquer resistência.  O suor clandestino esbate vergonha e combate qual sabre as dúvidas.  A noite feita à medida de libertinos cancela as vozes interiores que alertam para mais uma queda dolorosa. A brisa quente atordoa, embriaga no contacto com a pele. O tempo pára, as palavras suspendem entre olhares que sustentam no ar tórrido toda a narrativa; qual pornografia sem mácula, mas plena de pecado. A lua cheia transborda e dá luz à ausência de sanidade que percorre no corpo. Tudo parece possível, uma corrente de liberdade atravessa-nos com o sabor do quente esmagado. E, mesmo assim, pulsa algo mais intenso. Mais derradeiro. Mais dominador. Mais perverso que o toque dos dedos. Mais agressivo que a temperatura irrespirável. O freio da impossibilidade.  A intuição luta com o medo e na arena o medo mesmo que picado tem sempre muita força. O medo acossa-nos.

Os lambe-cus (MEC)

Os Lambe Cus, by Miguel Esteves Cardoso   "Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele. Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá- los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia. Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alun