O cigarro estava no fim. Ardia devagar, sem conhecer a pressa do ardor dela, a antítese pura apesar de que a cinza que ia ficando esquecida no cinzeiro não fosse mais do que fragmentos da sua alma. Mais um travo e aquele outro cigarro tería o seu fim sem que isso importasse pois o maço estava ainda a meio e mais um café vinha a caminho.
Chovia. Não se iría esquecer do som das gotas que caíam no pavimento. Tudo o resto estava abafado pelo barulho incessante e imperceptível da chuva. Porém, para ela era audível dado que para o que sobrava estava como que surda. Pessoas, passos, conversas, tudo se movia na ausência de realidade, na sua ausência de atenção.
Ele entrou de rompante. Imponente. Os olhares desviaram-se para ele, tocaram-no sem que ele se importasse. Percebia, mas não lhe interessava. Vinha atrasado. Tornara-se num hábito. Sentou-se junto dela sem a conseguir despertar do sonambulismo em que ela militava. Dois novos cigarros acenderam-se de imediato sem se cruzarem e em mundos à parte.
Ele sorriu e isso afectou-a. Pô-la de alerta. Não conseguia estar sossegada com aquele sorriso por perto. Endireitou-se na cadeira e o rosto expressivo tornou-se frio e sem rumo, indecifrável. Ele sorriu de novo sem razão aparente a não ser ter percebido que estava a jogar em vantagem. Conhecia-a tão intimamente como o animal o seu território ainda que a intimidade dela fosse um recanto escondido da Humanidade, impenetrável, desconhecido, incerto.
Palavras ecoaram. Ela não as entendeu. Nem sequer as escutou. Divagava perdida na voz dele, no ácido acutilante que ela representava, invadindo-lhe o espírito com lembranças desgastadas, num ritmo pausado mas devastador. Anuiu, por fim, maquinalmente. Já não se sentia dona de si mesma, perdia as forças sem, contudo, o revelar; arrastava-se na corrente simulando estar ancorada; tremia, enfim, sem deixar perceber as fendas.
Olharam-se, por instantes, olhos nos olhos e o universo girou, paz e guerra colidiram, o tempo parou como se nunca tivesse tido inicio. Bailaram a dois, algures uma sinfonia tocava só para eles mas tão baixo que eles não escutaram, não sentiram e debandaram. Desviaram-se para outros pontos de referência. Um quadro da cidade jazia na parede de cor indefinida. Uma criança teimava em comer um bolo grande demais para as suas mãos anafadas. Mas a menina persistia com aquele dom que só às crianças é permitido de acreditar que lutando e querendo muito as coisas acabam por se concretizar. A insensibilidade mata essa ilusão esboçando uma outra realidade que se torna, por vezes, tão cruel exactamente porque lado de criança que sobrevive às intempéries mais tenebrosas continua a crer que é possível desejar algo de forma intensa e obtê-lo. Morremos todos dias mais um pouco por não conseguirmos erradicar essa vã esperança.
Ele voltou a falar. Banalidades. Ambos queriam fugir dali. Afastarem-se para longe do desconforto que cada um infligia ao outro. As mãos trémulas dela davam sinais de insanidade. Ele ansiou por carinhos daquelas das mãos mas não se deu conta que os desejava. Nunca se apercebera do quanto necessitava dela, do cheiro que ela emanava ao passar indiferente, do brilho dos olhos negros, do toque delicado da sua presença. Ele nunca vira nada disto, nunca conseguira aliar-se à presença dela.
Ela comprimiu o isqueiro até deixar marca. Num ápice outro cigarro entre os dedos longos ligeiramente nervosos, o fumo aninhou-se na vastidão que os separava, enredou-se com calma entre eles e por ali pairou sem que ninguém o respirasse. Os minutos passaram como se estivessem suspensos num crescendo tão próprio, perene, sem convite para avançar, sem vontade para ficar.
Trocaram alguns monossílabos monocórdicos, pois há muito que a emoção se dissipara, se é que chegara a perdurar assim tão intensamente. A dúvida estivera sempre lado a lado com o quotidiano daqueles dois seres que se haviam juntado pela força da paixão de um e pelo desalento carente de outro. Nunca existira o equilíbrio, nunca fora uma convergência de sentidos e trilhos, apenas duas calçadas de Lisboa que se cortaram numa avenida e seguiram independentes o seu caminho para o Tejo.
O ambiente tornara-se pesado, contaminado por tantas questões por resolver, tantos poemas apertados na garganta que urgiam ser alvo de gritos. No entanto, o marasmo e a convicção de que não valia a pena prevaleceram. Levantaram-se em simultâneo, ele pagou a conta pela última vez e ela esperou-o à porta permitindo que a chuva lhe ensopasse o corpo tenso e lavasse a mente das pressões que ameaçavam miná-la sem misericórdia.
Colocou os óculos de sol e sorriu, por fim. "Adeus" desenhou-se nos seus lábios cansados de diluírem mágoas em privado. "Amigos", retorquiu ele em retórica, pedindo dela um sinal. "Desconhecidos", ripostou ela, enquanto rodopiava como bailarina graciosa entre as pequenas poças e desaparecia no fundo da rua movimentada.
Ele viu-a partir e esperou que ela voltasse. Quedou-se sozinho e aguardou. Sentiu o impulso para correr atrás dela, mas resistiu pois não o conseguia explicar e só fazia aquilo que percebia. Foi-se deixando ficar séculos até entender que ela não sucumbiria. Então sentiu-lhe a falta, tornaram-se inteligíveis as saudades e tomou consciência que perdera o que não chegara a ganhar porque nunca a amara como a amava naquele momento. Derrotado, deambulou e desejou voltar a encontrá-la sabendo de antemão que era tarde demais.
(Agosto 2000)
(mónica pinheiro, autoria)
(mónica pinheiro, autoria)
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