Acordaste de modo pacifico enquanto o Sol se aventurava pelas frestas da janela mal fechada, soltaste um braço da lisura do lençol de linho e esfregaste, ao de leve, os olhos tentando trazer à tona as recordações mais recentes do que foi feito antes de teres despertado. O vazio bailava no quente dos teus olhos negros... não te lembravas de nada, estavas perdido como era teu costume pelo amanhecer. Bocejaste baixinho e aninhaste-te mais um pouco.
Observei os teus movimentos pela nesga de espelho que conseguia vislumbrar da cómoda e deixei-me estar quieta, com medo que desses por mim, que te espantasse. Quase não respirava só para que a minha presença não fosse descoberta, estando ali mesmo ao teu lado, colada a ti pela imobilidade dos dois corpos, no silêncio do quarto interrompido pelo temor acelerado do meu ritmo cardíaco.
“Bom-dia”, disseste em tom calmo adivinhando os meus receios. Suspirei, mas custou devolver-te a resposta. Que tonta, é fácil de dizê-lo agora, mas naqueles segundos era-me tão difícil encarar-te. Lembraste? Foste tu o próprio que retorquiste através de um abraço espontâneo e um beijo algures nos meus cabelos desalinhados pelas costas nuas. “Sei que estás acordada, quando dormes não páras de te mexer!”. Senti-me estúpida - há quanto sabias que te estava a observar refugiada no subterfúgio de um aparente sono? Encostaste-te a mim, tentando dar vida ao meu corpo tenso. Acho que perdi por breves instantes a razão e vi-me a levitar nos teus braços, entre ondas de um mar que comparavas sempre aos meus olhos. A felicidade pode ser percepcionada, vista com tanto realismo e intensidade que é por aí que nasce a nossa insatisfação natural - conseguimos, por vezes, ver com uma clareza cruel o que nos enche as medidas mas temos que viver uma outra realidade tão distante do que nos foi ofertado como visão. O desfasamento é um castigo para crimes que não cometemos.
Ficámos assim embalados muito para lá das horas convencionais, sem carícias ou palavras, apenas com a imaginação solta, a correr livre por caminhos que não eram os nossos. Não sei porque tanto te quis quando tu por mim não tiveste de lutar. Desculpa, sei que sou egoísta, mas não acho justo que me ocupes todo o espaço e a mente sem que o retribuas da mesma maneira. Acho que empatámos porque descobri que sou mais forte que tu... É verdade, não consegues reparar? Sobrevivo melhor ao embate de te ter sem que me queiras enquanto tu procuraste em mim o refúgio que noutro horizonte te escapou. E a mim, quem me consola sem pedir nada em troca? Quem me compõe de ar e força em abnegação pelo meu pulsar? Pois... percebes agora como sou mais desprendida, mais sofrida por calculismo e racionalismo de perceber as coisas para além da camada de ouro e rosa com que se pinta a vida que se quer cómoda, segura e certa?
Soltei-me do teu longo abraço e procurei conforto numa velha t-shirt que me lembrava todo um capítulo em que tu não entravas, em que não tinhas arrebatado o protagonismo das cenas e em que eu tinha estado muito mais tranquila no mundo que criara como existência. Estava farta deste constante caminhar para nada apesar de ambos fingirmos que algo nos esperava no fim da plataforma. Mentiras? Não, andávamos a errar connosco porque não sabíamos o que mais havíamos de inventar para que não ficasses sozinho e eu não ficasse sem ti.
Escondi-me na banheira, tranquei a porta com medo que te aproximasses, olhei a tua roupa em redor e senti-me sufocada. No quarto as nossas músicas ecoavam acompanhadas pela tua voz matinal, ainda rouca da noitada. Deixei o corpo escorregar pela parede fria, isolei-me no canto mais escuro e encolhi-me contra os joelhos com uma força desmesurada e para lá de qualquer lógica. Assustavas-me com a tua proximidade, com o modo casual como encaravas a nossa comunhão, como te tinhas adaptado a mim como se fosse a tua única esperança quando eu apenas queria que olhasses para mim da maneira mais simples do mundo, sem eufemismos nem expectativas, apenas por ser eu a tua substância, a tua matéria, as tuas circunstâncias.
Não sei quanto tempo estive ali abandonada às minhas contemplações existenciais, revi tudo em câmara lenta, chorei em tom dolente, arrependi-me de tudo o que contigo partilhei, senti vergonha de tanto tu em mim estares colado como segunda pele. Parecia estar anestesiada pela dor, a ressacar de uma dose letal da droga que escolhi para substituir a pujança do meu ego, o vicio do café, a nicotina relaxante, a amargura do álcool.
Estava certa que não te queria a meu lado, que eras maldição milenar que me corroía sem estancar, que me atirara para uma mutação que não conseguia controlar, assustava-me a mim própria ter-te por perto. Invadiste os meus pensamentos com o toque das tuas mãos nos meus ombros em massagens lentas que me esvaziaram progressivamente das forças, anularam resistências, arrastaram-me sem pudor, em entrega sem retorno. O meu súbito «não» soou a ameaça, a loucura, a apelo, a ordem, a demência. Ficaste a mirar-me de modo incrédulo, devo ter gerado o terror que se estampara no teu rosto que a cada novo olhar me atordoava. «Não», repeti agora já num modo menos repentino, mais assertivo, mais ciente que te estava a colocar para fora de mim, que te estava a abandonar à tua sorte. Sim, tinha que ser eu a sarar a ferida que começava a propagar sempre que me tocavas, sempre que sorrias, sempre que te mexias por entre os meus gemidos, sempre que me amortecias em cada queda na alcova.
Não dei por partires. Será que ainda ficaste à espera que fosse à janela gritar por ti? Será que morreste um bocadinho ou seguiste em frente aliviado? Ainda me achas doida? Acho que ouvi a porta a bater, mas também podia ser um trovão a irromper pelo céu para me fazer companhia agora que a casa voltava a estar vazia de ilusões. O remoinho da solidão percorreu-me e integrou-se de novo na minha alma de onde eu pensei um dia tê-lo expulso. Não me lembro de ter chorado... viste alguma lágrima a amaciar-me as faces ou saíste sem me ver pela última vez? Recordas-te ainda de mim ou a brisa da liberdade devolveu-te a sanidade, aniquilando a minha fugaz memória?
Penso que demorei a levantar-me e a sair do esconderijo, tardei a rever-me como sou, mas não dei logo pela tua ausência, a não ser que aquele aperto que me afagava os suspiros fosse um sinal da falta que me fazias. Os dias continuaram a ter todos os segundos que são suposto ter, a televisão mantêm-se inalterável, os livros contam as mesmas histórias que todos conhecem, as noites são iguais pelos antros que sempre frequentámos. Nada mudou com excepção que te fizeste à estrada e eu de ti não me consigo libertar, por ti como sofro, para ti abdiquei do que me oferecias e sem ti sei que terei que enfrentar sem perdão o mais triste dos quotidianos. Um dia pode ser que percebas porque o fiz...
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