Para lá do ponto de atracção de turistas e boémios, o Chiado é um ecossistema próprio dentro de Lisboa. Tem uma vitalidade, uma cor e um modo de estar tão característicos como únicas são as várias formas como se deixa observar.
Chove de forma irregular quando começo o périplo pelo Chiado. Cedo, para os padrões da zona, pautados mais pela actividade da noite. Tento não derrapar na calçada portuguesa que é letal quando chove em demasia, ou quando faz muito calor, ou em qualquer altura, a bem da verdade. Cidade de colinas forrada a calceteiros é uma péssima ideia mas somos originais, nada a fazer.
Desci no autocarro, ainda na rua D. Pedro V. A carreira 58 é uma das minhas favoritas, sobretudo ao Domingo, quando não vem muito cheia de idosos ou de pessoas em direcção ao comboio e aos barcos que estão lá em baixo, no rio. De Benfica ao Cais do Sodré, vê-se boa parte da cidade, frequentemente por ruas antigas e castiças.
As pessoas que iam passando por mim, de máquina fotográfica em punho, abeiravam-se do miradouro de S. Pedro de Alcântara, fazendo poses com o centro de Lisboa e o Castelo de São Jorge a servirem de pano de fundo. Ouvia-se uma algaraviada de línguas diferentes. Na minha mente, estes efeitos sonoros remetem-me para uma Lisboa cosmopolita de épocas navegantes.
Entrei no numero 45 da Rua São Pedro de Alcântara, onde mora uma das maravilhas mais negligenciadas pelos lisboetas, o Instituto do Vinho do Porto. Para além da visita e das compras que atraem os visitantes estrangeiros, o que me encanta é sentar-me numa das zonas privilegiadas daquele antigo palácio, degustar um copo de vinho e ler. Ou observar.
Ao meu lado, duas britânicas, que não se viam havia meses, punham a conversa em dia. Fui óbvia no modo como as olhei e isso chamou-lhes a atenção. Expliquei-lhes que andava à descoberta do Chiado e elas riram-se. Era um paradoxo. Mas alinharam.
Lucy era uma inglesa à séria. Loura, alta, de pele branca como Petrarca havia desejado e uma pronuncia posh[1]. Nasceu em Manchester mas viveu toda a vida, 23 anos dela, em Londres. Na passada Primavera, a caminho de Barcelona, com um namorado, conheceu Lisboa e gostou tanto que em Julho já cá morava. Voltou a ser solteira, deixando o jovem que regressou à City, inscreveu-se num curso de Português na Clássica e dá aulas de equitação. Lucy partilha casa, em S. Bento, com uma australiana, que vive dos rendimentos, e namora com um cabo verdeano, chamado Daniel, que já veio ao mundo para bandas da Amadora. Daniel é instrutor num ginásio afamado e foi aí que Lucy o conheceu. Os olhos verdes dela brilham quando fala de Daniel e da comida africana. Mostra-me uma fotografia no IPhone. Daniel é um mulato claro, de traços brancos mas com um tom de pele suficientemente malandro.
Rose, a amiga, está de férias. Segue para Singapura antes do Natal, onde a mãe vive. É morena, tem voz dura e é pouco subtil nos gestos. É a sua primeira vez em Lisboa mas há anos que passa férias e ressacas no Algarve. Confessa que gosta muito desta cidade, cheia de luz, por contraste com Londres.
É um bálsamo ouvi-las falar destas ruas, dos bares do Bairro Alto, das vistas dos terraços dos hotéis ou do por do sol no Guincho. Vibram quando partilham essas experiências. Não obstante, Lucy volta a Londres para as festas natalícias. “There’s no Christmas without snow and cold.”[2]
Canta o Bairro Alto, canta, que encanta com o seu balão ...
De novo às voltas com o piso inclinado, o jogo do sobe e desce, entrei pela Rua Luísa Todi em direcção à Rua da Rosa.
Sem dealers à vista, que eles também dormem, aqui e ali à janela viam-se pessoas à janela. Uns apenas contemplando o dia que corre com a lassidão do costume, depois da balbúrdia noctívaga de Sábado. Outros, estendem roupa com cheiro a lavado, aproveitando uma brecha de Sol. De uma casa ouve-se Tiago Bettencourt a cantar o “O Jogo”, enquanto um grupo de jovens almoça, tardiamente, ao estilo buffet numa sala com paredes de diferentes cores. Cá de baixo, vê-se tudo, ouve-se tudo.
A mercearia está aberta. No balcão antigo, com máquina registadora, está encostada uma senhora sem idade definida, de cabelo muito preto, mal cortado. Está de chinelos e meias grossas com o corpo sob os seus próprios braços, enquanto conversa com a única cliente. Enquanto procuro uma garrafa de água, percebo que a D. Adelaide, a cliente, tem muito pouco apreço pelos vários vizinhos brasileiros que a rodeiam. A senhora do balcão, cala como quem consente, e só me vê, verdadeiramente, quando lhe digo “obrigada, boa tarde.” Sorri-me com real afabilidade e ajeita a bata azul.
No degrau do prédio ao lado, onde ontem pela madrugada, se misturou cerveja perdida com beatas atiradas para o chão, está agora sentado um jovem de t-shirt, boné e brinco dourado na orelha. Bairrista. Apesar do ar de má vida, quase aposto que chegando os Santos, desce a Avenida a cantar com o maior orgulho. A marcha do Bairro Alto é das memorias mais vivas que eu, enquanto lisboeta, possuo.
Antes de chegar ao local do crime, onde existe a melhor mousse chocolate de sempre – o Pap’ Açorda – deambulo, sempre a ver se não há carteiristas nas imediações, pela Travessa do Poço da Cidade, até chegar à Rua do Norte. Num rés-do-chão, por encomenda alguém costura, ao som de fado do antigo, nada de Mariza ou Mafalda Arnauth (modernices!) e em frente uma loja cool de cupcakes. Esta suave contradição é daquelas imagens que não necessitam de nota de rodapé em movimento.
Jovens com look estudado dos anos 80 (coisa que me faz confusão!), convivem com casais enamorados que vêm dos subúrbios à procura de sofisticação e de locais habitués, já nos quarentas, que lêem o Expresso e discutem o grau de perversidade ou de pedrada no charco que o Julian Assange provocou.
Dado que não há sofás livres, opto por continuar até ao Largo do Camões, decorado para o aniversário de uma das maiores forças sindicais do país. Paro no restaurado quiosque para o café e sigo, enquanto não chove, pela Rua da Horta Seca, atravesso a Rua das Chagas e chego à Rua da Bica de Duarte Belo. Poiso cultural, é uma zona que ganhou uma nova movida nos últimos anos, com a chegada de novos moradores, maioritariamente, actores, músicos e fotógrafos. O centro agregador, em torno do qual, outros bares animam a Bica de Duarte Belo, é a Bicaense. Esta antiga tasca convertida em café e bar, foi em tempos, um restaurante. A minha jovem vida adulta passou-se ali, em muitos jantares, sexta feira adentro. Depois rumava-se a Santos mas, nos dias que correm, ali passa-se tudo.
À simplicidade vulgar do copo na mão que caracteriza o estilo Bairro Alto, com as suas tribos multifacetadas, a Bica emerge como um local Boho Chic, mais adulto.
O pão que o Chiado amassou
Subindo pela Rua do Alecrim, já reina a agitação no Largo do Chiado. A Brasileira fervilha de estrangeiros desejosos de tirar uma fotografia com o Pessoa. O poeta, nem sequer nos seus diferentes “eus”, imaginou algum dia ser reduzido a esta exposição mediática de papparazis amadores.
O café A Brasileira do Chiado, com abertura datada de Novembro de 1905, é hoje um dos maiores engodos da cidade. E explica muito o que é ser “turista”. Tem, talvez, o pior serviço ao cliente do país, é careiro mas como consta em todos os guias de viagens sobre Lisboa, atrai pessoas como se de mel se tratasse. Vá-se lá entender este raciocínio. Como a Bénard está fechada, o croiassant que derrama chocolate fica adiado para dia 24 de Dezembro, a minha tradição pessoal.
Ali em redor, à medida que se calcorreia a Rua Garrett, animadores de rua meio punk, meio hippies (e com pouco banho), fazem malabarismos sem energia nem grande artimanha, em busca de esmola, pelas portas das várias Igrejas. Esquivo-me com rapidez sem deixar de admirar as luzes natalícias. Aqui, são mágicas.
Subindo a Calçada do Sacramento, aproximo-me do meu destino final. Não vou ao Carmo, nem ver o Convento, nem comer scones com chá, no Largo. Páro antes, na Panificação do Chiado, um dos meus sítios preferidos.
Antes do Kaffehaus, antes da Nespresso, antes do Santinni, antes do Starbucks, já a Panificação dava cartas. Ou melhor, desde 1919 que dava pão. Desde cedo que se distinguiu, quando um mestre padeiro austríaco veio importado para criar as famosas “vianinhas”, ou quando ali foi confeccionado um pão único para António Oliveira Salazar (que esteve anos sem ser produzido, depois da sua morte, sendo, na actualidade comercializado), ou quando hoje tem dos melhores baggels que se pode comer aqui pelo burgo.
Sento-me numa das mesas altas, que recentemente, depois das obras, mudaram de direcção. Peço um pão tigre com manteiga, um copo de leite e um café. Vezes sem conta tomei aqui o pequeno almoço, acompanhada de um livro e por ali ficava a ver passar o Chiado nas suas diferentes vidas.
Entra uma senhora que já se move com dificuldade, cumprimenta as empregadas, todas pelo nome, e com carinho. De imediato, e de forma rápida, da zona interior, vedada ao publico, sai um dos donos com um bolo de aniversario, de velas acesas e a loja inteira começa a cantar-lhe os Parabéns. A senhora emociona-se mas mantém uma dignidade contida.
Levanto-me e junto-me aos outros (poucos) clientes e dou-lhe um beijo de felicitações. Chama-se D. Vitória, comemora 64 anos e é cliente da Panificação desde os 28, quando se mudou para a Rua Ivens.
Na altura, acabara de ser mãe pela terceira vez (do único rapaz, o Ricardo), e a casa em que vivia na António Augusto Aguiar tornara-se pequena para ela, mais o marido, as crianças, a criada e a ama. Ao inicio, era o padeiro que levava o pão a casa pela manhãzinha, e a empregada Celestina reforçava a dose à tarde. Vieram mais dois filhos mas hoje só um a acompanha.
Viúva há 10 anos, sobreviveu à morte da filha Ana (a mais velha) com cancro; ao suicídio de Ricardo, ainda antes dos 25 anos, sempre deprimido pelo vicio do álcool e da tristeza; e ao acidente de carro que decepou a família da sua Margarida. Catarina, a filha mais nova, vive nos EUA, onde estudou e casou com um alemão, vendo-a apenas de dois em dois anos. Em Portugal, resta Joana, professora universitária, que está no Porto mas quinzenalmente visita a mãe.
Custa-me que a curiosidade desta reportagem tenha feito a D. Vitória recordar tantos episódios tristes. Toco-lhe na mão em sinal de agradecimento e ela retribui-me com um sorriso sincero. Está só no seu aniversário mas sente-se acarinhada e animada por ter quem a escute. Apesar deste percurso, nunca abandonou o segundo andar, sem elevador, do qual já custa subir e descer. “Sair do Chiado? Nunca!”, diz-me com ar sério. “Foi aqui que construi a minha história e não há outro sitio para transferi-la”.
Conta-me que o seu maior medo foi perder as fotografias, as recordações de viagens e as roupas de bebé que ainda guarda, aquando do grande incêndio, no verão, de 1988. Íamos perdendo o Chiado. Todos se entreolham com pesar, mesmo Jaime, que se juntou à conversa. É advogado, tem 27 anos, trabalha numa das grandes sociedades sediadas na Rua Garrett e está numa merecida pausa de quem foi trabalhar ao fim de semana. Tinha 5 anos quando ardeu o Chiado e o país chorou. Não se lembra mas a avó ficou desolada. Jaime adora trabalhar aqui e nem quer pensar que esta realidade podia não existir. O seu sonho é conseguir alugar uma casa na zona das Belas Artes ou do Teatro Nacional S. Carlos para dividir com a namorada, auditora numa empresa sonante.
Apesar de ganharem ambos acima da média dos jovens da sua idade, comprar é simplesmente impossível. Um lugar não é a jóia da coroa de uma capital europeia sem ter um preço associado. Neste caso, um preço alto.
Com os sinos a anunciar as 19 horas, fecha a Panificação, desço a Rua do Carmo e encerro este capitulo. No próximo fim de semana estarei de volta.
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