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Mensagens

A mostrar mensagens de 2017

Da fronteira imaginária

Ele deitou-se e no silencio, na escuridão, na solidão e imaginou-lhe o cheiro solto do cabelo que lhe costumava cair no peito quando ela se aninhava nele a ler. O sabor vibrante, sequioso, apaziguador da sua boca quando o calava por entre risos e desejo evidente. Ela partira. Tinha ido há já algum tempo mas não sabia determinar quanto. Parecia-lhe muito desde que a porta batera com um estrondo e os saltos dos seus sapatos tinham ecoado nas escadas de madeira antiga. Desligara o voice mail portanto não lhe podia deixar mensagens. Havia-o bloqueado, não lhe podia ligar nem chamá-la pelas redes sociais, para lhe repetir à exaustão como sentia falta de dormir encostado a ela. De a ver maquilhar-se pela manhã com precisão paciente e fria. Das respostas mordazes e cirúrgicas sempre na ponta da língua, pronta a provocar quem estivesse em seu redor. Estiveram tão perto mas deixaram tudo invadir pelo meio. Ele permitiu-se ao luxo de não lhe dizer quanto a amava, todos os dias.

Das contas que não se ajustam

Não peças desculpas, não há contas a ajustar. Não lamentes só porque te faz sentir bem essa superioridade compadecida que supostamente apaga todos rasgões. Não presumas que percebes, apenas porque te dei o que precisavas de modo genuíno e sem nada pedir em troca. Não aceites que é jogo de soma nula porque apesar do que ganho, mais perdes tu pelos meandros dessa obstinada forma de magoar. A verdade é que apesar de amarga, sabe-me a vitória. Sem sombra de culpa.

Dos pedidos

via  boudoir photography Pediste-me que esquecesse as reservas e baixasse a guarda. Construir é entrega para um bem comum sem esgotar o nosso universo, sem extinguir chama própria. Pediste-me que acreditasse na força das tuas mãos nas minhas costas. Na tua boca a devorar-me o pescoço. No carinho dos teus braços em mim. Na vontade de o repetir todos os dias. Pediste-me que não ficasse na sombra, não deixasse o lado mais negro toldar as minhas decisões e a reger os meus receios e hesitações, que me libertasse dele para sob um riso contagiante entrar num caminho mais cómodo, de quem genuinamente gosta. De quem se quer. De quem almeja a descoberta e a conquista diária. E, embalada no afago das tuas certezas e no calor da tua voz, acedi com convicção de que não seria uma vez mais uma batalha perdida e um reflexo imaginário. Algures pelo caminho, perdi-me. Sucumbi que nem folha de papel ao engano. E podia pedir-te misericórdia; prefiro não ceder mais e subir as mura

Do natal, deste natal

Dormi sob estrelas sem sequer as ver apenas por sentir a intensidade do teu olhar que iluminava tudo à minha volta e incendiava o meu interior. Dormi como se fora verão quando gelava a noite lá fora só porque os teus braços me apertavam com suavidade impiedosa, territoriais e fechados sobre mim, protectores e prometedores. Dormi enquanto chovia sem cessar, bafejada por aparente calma de um campo de espigas sob leve brisa. A trovoada embalou-nos, perdidos num frenesim só nosso, de inconsciencia até esgotado o prazer, e fixarmos os olhos sem desviar, para que tudo ficasse dito. Estou desperta. Para a oferenda dos sentidos, para te acolher sem demoras, para estar com conforto e irrequieta, para me deixar ir no brilho sem misericórdia com que páras em mim.

Da luz e da sombra

O dia do casamento chegara com os nervos próprios de noiva. Ela tremia, de vez em quando, mesmo estando só no quarto de hotel onde se havia preparado com o vestido branco, caro e perfeitamente ajustado ao corpo. No mesmo quarto onde lhe haviam penteado o longo cabelo louro num puxado perfeito e elegante. Onde a haviam maquilhado em tons de uma beleza intocável.  Sentada no tocador, olhando-se ao espelho, manifestava uma aparente calma mas os olhos bailavam agitados, receando que algo estivesse fora do sitio correcto. Os sapatos de salto desafiador aguardavam, alinhados, ao lado da banqueta. As flores, num arranjo sem mácula, estavam à sua frente, prontas a desfilar por entre o publico que aguardava a grande festa. O perfume, mandado fazer por encomenda, para ela, para a ocasião, jazia no frasco de vidro minimalista depois de o ter espalhado com estratégia cirúrgica na melena, no pescoço, nos pulsos.  Bateram à porta. Duas pancadas secas. Era o aviso. Faltavam cinco minut

Da intensidade do hoje

E um dia o espelho devolve-nos uma imagem exausta, fatigada pelo rigor das lâminas que fomos deixando alojar, pelas rugas sulcadas sob o peso das lágrimas que não admitimos verter. O que vemos é uma versão nossa não realizada, um amontoado de insónias, noites mal dormidas pelas voltas da cabeça em fuga, em choque, em dor. Pelo que não aconteceu. Pelas escolhas e pelas perdas que cada uma delas implicou. Em cada vinco da pele uma trovoada. Uma reviravolta do tempo que deixou convulsões. Dívidas não cobradas de carinho, de confiança, de abraços que ficaram por dar, por receber, onde não nos deixámos descansar nem esquecer que lá fora o vento arrasava tudo. Contra a marcha imperial dos dias, há que viver com paixão sem fim, com entrega, com fervor pela individualidade e intensidade do hoje. Não depender do que possa suceder, dos afectos que podem chegar, dos olhos que poderão pousar em nós. Viver, abrir os braços ao mundo com irreverência e não permitir que o caminho se

Das esperas

Esperas por mim. Todas as noites como em todos os dias em que não nos havíamos ainda conhecido. E foste aguardando. Até que nos cruzámos sem pressas num local estranho isento de culpas, de pressas, de barreiras. Pleno de silêncios, de um abraço sem fim, de encanto. No meio do caos, dos riscos, do frio, dos medos, das circunstâncias acidentadas, vagueavas à minha espera. E eu fugia por entre estradas fustigadas sabendo de antemão que chegar a um refúgio era construir algo que seria mordida de serpente. E sucumbi à espera. Nos teus braços encerrada encontrei paz. Com o teu corpo a proteger-me, sentiste que a espera fora apenas uma passagem breve para um mar picado mas sempre em desafio. As ondas colidem sempre que nos deixámos de esperar. Batem com força e morrem suaves na areia. Esperas por mim no paredão. Até quando? 

De não te saber

E se nunca te vi e, ao cruzar-me contigo, estremeço sem perceber as razões? E as pernas que fraquejam perante um coração que dispara como cavalo selvagem livre em campo aberto? E não consigo evitar de buscar-te entre a multidão que não me interessa e só gera ruído até que os nossos olhos se fixam com intensidade e, neste frame , imagino uma queda no tapete com roupas tiradas devagar por oposição ao consumo veloz da boca. Não te consigo desenhar com precisão mas sei-te de cor pelo toque arrojado, pelo desejo incontido, pelo abuso ávido com que me tens e me usas. Existes em mim, sinto-te a passar-me a pente fino as emoções com aspereza e efeito destruidor, quando nos submetemos, à vez, aos caprichos de cada um que preenchem o outro.

Do céu imenso

O lhamos o céu e potenciamos a capacidade de nos realizarmos em pensamentos. De ver sob um angulo sem espessura a matéria que nos reafirma e preenche.  Nós e o infinito de possibilidades por mais agruras que nos rodeiam. Nós e a solidão, apesar de quem passa, quem está, quem anda em pêndulo entre o nosso abraço e a dúvida, quem não quis estar. Nós e o silêncio, esse amortecedor de inquietudes. Nós e o que falhou em pancada seca como dor em ladainha, o que não vamos repetir, o que jurámos expurgar das roupas a que chamamos dia seguinte.  Nós e apenas nós, pois o céu é imenso, acalma, sana o que não se descreve mas não comporta outro fôlego.

Da surpresa doce

Ele é gentil.   Tem um olhar meigo que se adivinha por debaixo do ar sonhador, distraído como se as respostas e as linhas estivessem sempre no céu azul.  Como se todo um filme de argumento delicado, fotografia suave, banda sonora que desinquieta  e amores felizes se desenrolasse na sua cabeça à medida que caminha por Lisboa.   E a mochila às costas só pesasse do livro e dos cadernos rabiscados com histórias e não com dúvidas e receios que o faziam retardar o passo. Ele é tímido, quase frágil. Uma doçura acariciava os demais quando observa. Vê beleza com uma claridade qual sábado de inverno que se levanta sobre a cidade com a sua luz única.  Há paixão inflamada sob aquela calma, como jazz que arrepia, que perturba, que faz gemer.   Ele é uma surpresa doce.  

Dos olhares que se desviam

E depois? Como nos olhamos outra vez?  Optamos pela solução fácil de recolha cada um a seu canto, ainda   com a adrenalina em alta do combate, mas com os hematomas devagarinho a aparecerem, corpo recostado nas cordas, feliz, miserável, a habituar-se à distância que aí vem.  As marcas, por mais fortes, vão sarando à medida que os dias passam, sem nada mais acontecer.   As dores ficam enquanto andamos no passo diário, nas musicas que ouvimos, nas piadas que queríamos partilhar, no que podia ser a dois mas é pedido para um.  Regressos, novos abandonos, ou tudo igual. E aquele momento estranho em que apenas nos cruzamos, e um desvia o olhar. KO.  

Da desesperança

Não, não estou bem, estou de rastos, aliás não estou assim desde que o conheci? Desde que aquela voz me acordou, que aquele sorriso cortou as mesmas conversas, o mesmo raciocínio, a cumplicidade, um não sei quê, um aperto no peito que enlouquece sem aparente razão ou motivo, uma dor que mata, que corrói, que dessossega, mas que enebria, que entontece, que perdura num travo suave de cravinho e rosas por entre sonhos sempre com o mesmo rosto que se afasta porque nada o prende, nada o cativa, porque não há motivo para ficar. A dor não se mexe, permanece aqui dentro mas sou eu que não posso ficar agarrada a ela, sou eu que me tenho que desprender e zarpar veloz para a confusão, para o caos, perder as ideias, esvaziar a cabeça e pairar sobre tudo e sobre todos com a displicência de uma mente arrebatada e sem grandes desígnios! A vida não podia ser menos cor-de-rosa e mais ambígua que uma paisagem agreste e belicosa. Porquê aquele dia, porquê tê-lo conhecido só para me enredar n

Do estar ali

Ali estávamos. Sem assunto e com tudo para dizer. Num lento avançar para conquistar espaço ao outro como se fossem pernas a esticar-se num sofá, encostadas a outras, encaixando de modo natural duas pessoas em descoberta, sob o efeito de embriaguez de Michael Kiwanuka e de um frio cortante. E estávamos ali. No perfeito desconhecido entre o abismo do que pode acontecer e a redenção do que se nos pode oferecer. Faltava somente um sinal. Um inclinar do olhar que despertasse a torrente de afectos contidos mas sedentos de encontrar uma finalidade. Ali jazíamos tímidos e voluntariosos, com a mente a 1000 sob uma falsa calma, distantes e territoriais, sequiosos de nos rendermo-nos ao apelo do outro. E ali ficámos. Ainda ali estamos. Faltou a coragem para derrubarmos as almofadas, experimentar os beijos do outro, perceber que fazia tudo sentido, que o sabor era uma questão sem questão. Estamos paralisados pelo medo. Do que implica gostar.

Do ser indestructível

Somos indestructíveis. Não somos, na verdade, mas temos que nos imaginar assim - indefectíveis, resistentes, capazes de desferir o ultimo golpe, sorrir no momento da vitória, alimentarmos a nossa coragem de determinação intrínseca. Crer que temos em nós os trunfos, seguir os instintos, ir a jogo, correr riscos, seguir em frente quando levamos a pancada seca da desilusão, de mais uma entrada dura  do adversário que não esperávamos.  Não ceder ao peso do infortúnio, da intempérie emocional de todas duvidas que nos assolam. As respostas não chegam fácil só porque ganhamos mais quilômetros de vida. Só a dureza de quem sabe que vai ganhar, no meio do remoinho, nos salva e nos confere um sorriso único.  Somos nós com todo desgaste, sem esperar redenção, à mercê da nossa curiosidade, paixão e vontade de ser mais. Somos temidos pelos outros porque sabemos que há em nós a dose certa de insanidade e fome que nos obriga a almejar. A cada dia com gratidão pelo que temos para nos dei

Das noites

Há noites em que o desejo tortura tal a necessidade. Em nós queima febril uma vontade de que não haja controlo, não haja restrições, os movimentos soltam-se com urgência e como se a sobrevivência estivesse em questão pelos beijos em sobressalto e a quente. Não há regras, só pele a latejar. Não há certo nem errado, apenas suor e pedidos em gemido por mais. Não há mais ou menos, rápido ou devagar, há um arquear das costas. Não há horas, somente fome por possuir, com emergência, ânsia, súplicas. Não há lençóis ou edredon, há corpos nus em dança a dois como se fosse ensaiada vezes sem conta ainda que fosse a primeira vez que as roupas tenham sido roubadas com brusquidão, e a exposição completa tenha sido uma revelação  ainda mais propulsora. Não há noção de espaço, todos os cantos são território a conquistar sob farta intensidade e poderoso engenho. Há noites que nada faz sentido sem ser não ter noção e perder os sentidos entre música e o som do roçar de cansaço e praz

Da porta

Há uma porta que balouça ao sabor da corrente de ar. Que nunca se fecha, em perpétuo movimento, à espera. De algo novo, de algo que não sei prever, de algo pelo qual busco incessantemente.  A porta agita-se mais consoante a minha insatisfação aumenta, quando a demanda se torna sufocante. Quando o imediato e a impaciência se aliam para me alimentar o caos.  A ausência de equilibro faz a porta movim entar-se mais depressa, a ranger com um som que me rouba o sossego, que ampara e desperta a inquietude.  A porta sucumbe a esta ventania, quase salta no remoinho e eu não sei se a atravesse com toda a fúria que há em mim, se resista com temperança.  O que seja, sou total, inteira. Mesmo ante a porta que não se encerra, que há anos me desafia a uma busca que não tem fim, que desgasta a madeira pelo cansaço, pela insatisfação, por algo que falta. E o chão está massacrado pelo fluir da porta pese embora que é neste contínuo andamento que está a minha história, a minha entre

Da coragem descrente

Ser genuíno. Não rendilhar com hesitações.  Ser honesto, ser completo e ir atrás do que se quer. Sem receio de julgamentos. Recusar jogos de fingir, de teatro, de sombras e bailado em pontas para não causar danos em outros que vivem à defesa. Conscientes dos riscos, dos novelos que nos condicionam e afastam do que queremos. Saber quando parar e assumir o que não vai acontecer.  Ter a lucidez de se ntir a paixão a arrastar-se por nós, a sulcar-nos em cada novo acordar, e mordê-la, submetê-la ao silêncio pois não passará disso: uma dor galopante pelo corpo na solidão de todos dias.  Ter o discernimento de aceitar que as desilusões são parte desta pele exausta e fria e que são hábito feito vida.  E nesta clarividência trilhada em gritos mudos, vamos recomeçando a cada nascer do sol, quando o banho lava as nossas resistências e o espelho nos devolve o que somos. Verdadeiros. Corajosos. Descrentes. Sofridos. Só nós.

Da bagagem vazia

Hoje queria ir. A força da dúvida empurra-me para a fuga. A expectativa do que pode estar pra' lá faz-me não querer esperar. O quando é uma dor dilacerante.  Preciso de partir. Sem nada na mão. Só a minha bagagem vazia e a vontade como declaração.

Do tempo que houve

Houve um tempo em que ele a desejava com certeza, veemência e tentação. Que pegava várias vezes ao dia no telemóvel para lhe ouvir a voz. Para lhe escrever como a queria. Que num flash lhe aparecia a imagem dos seus dedos nos revoltos cabelos negros que a ela caiam sem restrições pelas costas. Que o cheiro dela estava preso em todo ele, alguns dias tão intenso de saudade que a demência rondava. Houve um tempo em que esticar-lhe a mão, arrebatá-la para o seu peito, deitá-la com leveza nas penas do colchão, era o seu motor enquanto corria, sob chuva, sob frio, sob sol sem clemência. Enquanto bebia copos com amigos noite dentro em tertúlias que o deixavam esgotado por sentir-se tão só. Houve um tempo em que teria dito tudo que lhe apertava a alma e toldava o ar. O exercício de respirar com aquele peso no peito tornara-se hábito duro, feroz, ardiloso e um massacre com o qual já lidava com facilidade. Teria sido célere libertar-se, houvera dela um sinal de que esperava por el

Da chuva

Cerram-se as nuvens em torno de nós a ameaçar diluvio e de imediato os teus braços ganham força. Fecham-me em ti enquanto a tormenta se abate lá fora e o frio insiste que me protejas. Me incites a vontade. Alma em balouço embalada pelo som da chuva e pela tua respiração.  Voracidade a despique sem vencedores, ambos vencidos pela exaustão, gargalhadas e palavras. O céu cinzento entra por todas as janelas e ilumina as paredes de cada vez que sucumbo. Um planetário só nosso.  Chove e as tuas mãos sossegam, alucinam, desferem desejo. Chove e é como se reinasse uma febre em nós.

Do Agora

via  the girlfriend experience Agora dizes que fui um ponto de inflexão. Que fui quem parou o jogo de máscaras. Que te antecipou as jogadas e apanhou o bluff . Que te leu. Despiu todas as estratégias de força. Que te desmontou as peças. Que te reconstruiu com mestria. Que fui eu que vi as vulnerabilidades e as transformei em setas hábeis. Que te injectou confiança num chuto de força com coragem. Agora pedes para voltar. Que percebeste o quão fácil era seres tu aqui. Que neste território a agressividade era um estímulo. A paixão, avassaladora e orientada à transformação. Contínua. Que nenhum dia era igual ao outro. Que o desafio era estar à altura do desafio. Que as emoções ecoavam pelas paredes de tal a intensidade como queria viver o arrebatamento que nos unia. Que essa propulsão era lenha para a tua vontade de te entregares. Agora queres que eu esqueça. Que antes nada disso te interessou. Que naqueles dias buscavas algo menos profundo para as noites. Ou algo mais dentr

Do que não é suficiente

São os abraços quentes, ternos e que permitem rendição. São os beijos inesperados, fortes em tremor, desejo confessado ali mesmo, sentimento de pertença no sítio e hora certos, um sabor que escalda no mais profundo do nosso interior. São mãos sabidas que percorrem as costas com dolência e sentimento de protecção.  É um conforto que embala, que ampara, que anula a ânsia que consome. É bom. É suave e explosivo. É calma e pressa. É desfrutar e consumir avidamente.   E porque não é suficiente? E porque não nos deixamos ir em prazer e em queda livre sabendo que vamos aterrar e tudo fica bem mesmo que possamos esfolar um joelho? Porque se viram as costas, se negam as pessoas, se ignoram os toques de pele e o suor nas almofadas? Porque escasseia o tempo e sobram as razões para o "não"? Para onde vai a vontade, a paz do abraço, a magia do beijo, a antecipação de mão na mão?  Fodemos mais a nossa alma do que os nossos corpos.  

Do apenas eu

Se fosse um elemento, que fora vento para correr veloz, fustigar as alamedas não lineares que me pautam sem as tentar acalmar. Se fosse um animal, que fora cavalo, solto, selvagem, dócil para alguns, indomável para todos os demais. Se fosse uma cor, que fora de um azul exuberante, profundo, indecifrável, intenso. Se fosse objecto, que fora uma caneta sem limite de tinta para que nenhuma palavra, nenhum pensamento, nenhuma dor, nenhuma alegria ficassem perdidos sem repousar num papel. Sendo eu, e apenas eu, velocidade, inquietação, fervor e criação coexistem em caos, ora mais aceso ora mais em recluso, mas em mim, só para mim, por mim.

Da dor indizivel

Somos profetas da dor indizível. Receamos que se a desenharmos com contornos ela ganhe vincos abrasivos de giz a raspar na ardósia. Cortará ainda mais o que já de si nos foi sulcando a pele curtida pela imprevisibilidade, pelo cansaço, pela temperança que não desejamos.  Somos escrivas de olhares que pedem muito em troco do mesmo nada, encostados a doses finitas de emoção e sorrisos que apenas se abrem.   Grassa em nós a exaustão onde pulsa a vontade, o desalinho, a ausência de um sol apaziguador de quem anda em tempos desencontrados.

Da chama rápida

Somos tão breves. Leves. Apenas momentos. Insistimos em transportar peso. Tensão. Desnecessário.  Não controlamos, de facto, tudo. Ou alguma coisa. Há sempre algo que queremos que não vamos ter. Por muito que o desejemos, que o desenhemos na nossa mente como uma ilustração com cheiro, com sons roucos, com suor, com arrepios de prazer. A realidade, por si, e para nos relativizar, é feita de uma malha tecida com anos, com entregas, com construção cuidada, com os desígnios do que é uma edificação, as aspirações do que é a história de alguém.  E somos um flash. Uma carruagem de metro em alta velocidade que se acerca da plataforma, abre as portas para toda uma nova viagem, e a aventura que queremos não começa ali. O metro segue. Fomos apenas uma paragem no terminal, não houve quem entrasse. Vale a pena esperar por mais? Complicar? Sentir? Somos instantes. Para quê a fogosidade, se no segundo seguinte acabou o que nunca houve? Para quê a intensidade quando não há impuls

Da perseguição

Será que te lembras de mim? Sempre que alguém se acerca, me consome num abraço pleno, me agarra o cabelo com sabedoria e se dirige aos lábios com a vontade de como se fosse a primeira vez. Será que pensas no meu toque? Quando outrem me roda com volúpia no amarrotado dos lençóis e me puxa para uma confusão de sentidos, intenso cheiro a corpos em batalha, arrepios, suor e gemidos. Será que sentes a ausência da minha presença? Sempre que me aninho no peito de outro para adormecer, já derrotada pelo peso das horas, das decisões, da intensidade da caminhada, da entrega no sexo, e só busco amparo para usufruir da minha solidão. Será que alguma vez vou escapar da perseguição da tua voz, da subtileza como me levantavas do sofá com malicia de quem se ia perder no quarto, da segurança do meu silêncio no teu?  Vou gostar de ti, sempre. Mesmo que todos prazeres do mundo se desenlacem à minha volta, mesmo que não tenhas de mim qualquer imagem, será que alguma vez trocar

Do sorriso assassino

O sorriso assassino que me faz regressar para mais. Para outra reviravolta do que sou e para o estremecer das convicções, postas a nu pelo olhar destemido com que enfrentas esta dureza minha.  E caímos numa cama suspensa, sem tempo, sem palavras que nos liguem ao mundo real, à média luz porque somos um jogo de sombras. Não destróis o meu escudo mas invades a minha pele. Não me desmantelas mas as peças combinam melhor contigo.  Fujo, puxas-me. Quero, não dás. Doce guerra de forças, ironia de semblante silencioso, queda afectuosa no teu sorriso que me mata.

Não vás

Não vás, não desistas a meio do caminho porque a estrada não adere sempre do modo que esperas aos teus passos. O sinuoso caminho dá-nos o sentido de que que vivemos e traz-me mais próximo da tua inquietude.  Não vás, não traves a vontade. Deixa-me dar-te palco para que te esgotes nos meus braços. Dá-me um lençol branco como tela vazia na qual pinto a minha insanidade como penas que caem num som que mais ninguém ouve.  Não vás, mas sim sussurra em várias matizes de cor o que nos desperta.  Não vás, aqui dentro acertamos a dança.

Do costume

Os tempos nunca batem certo.  Quando começas a correr a maratona já se está a meio e não te deixam entrar. Já há um espaço em que os outros estão com o seu ritmo e o seu estilo. Os seus medos. Os seus amores passados que não passaram. As vidas que já se trazem plenas de história, de mágoa, de magia, de arrebatamento, de ansiedade, de ausência de paixão.  Os outros que não abrandam para correr ao nosso lado, nem aceleram para nos vir buscar. Nunca estamos em consonância. Nunca estamos no mesmo andamento. Nunca somos suficientes. Iluminamos a noite toda com a nossa força mas nunca somos lua cheia.

Do ser eu

Não és tu. Sou eu. Sinto as coisas sem as sentir de verdade. A minha essência é um modo estranho de distanciamento, de olhar através das pessoas e continuar a olhar para lá. Os meus olhos não pousam em ninguém, seguem em diante acumulando vidas, dor, histórias, dúvidas alheias, numa sucessão de miradas apenas em perspectiva. Não és tu. Sou eu. Convive em mim a risada solta com o cepticismo. Sarcasmo e desdém como peças de roupa preferenciais. Acreditar em pouco, em nada. O tempo passa e acreditar torna-se menos uma opção. As cenas repetem-se e dar de nós, emoção, intenção, afecto, já não é uma ação nem uma consequência. É inconcebível. Não és tu. Sou eu. Não vejo as coisas em branco e preto, acredito que há tanto mais de miscelânea quanto possibilidades de as zonas se cruzarem mas há cenários que estão desenhados como óbvios na minha mente. Imediatez do querer e o arriscar são naturais. Os “ses” toldam o caminho. Sinais de incerteza e indecisão são descartados co

Do que é ideal

Não há amores ideais. Irreal pensar que se atinge perfeição no amor quando se fala de pessoas numa dança continua de emoções, toque, perspectivas, tensão, desejo. Nada é perfeito na vida. Como podemos esperar que outrem, com as suas marcas, as suas pausas, as suas inconsequências, a sua imediatez, os seus triunfos possa estar sempre num alinhado movimento connosco? Não há amores ideais. Haverá ainda espaço para amores?  Num universo de constante corrida contra tempo, de assistência múltipla a uma rede infinita de polos de atenção, de um sortido de opções qual comando, é possível perpetuar a fuga e manter os sentidos quentes, a imaginação activa, o corpo em combustão sem que haja espaço ou vontade para que algo mais nos sustente, nos obrigue a dar, nos leve mais longe. Ideal, seria pois amar. Sentir conforto, naturalidade em amar como se não fosse algo tão impossível quanto missão, tão danoso como improvável, tão unilateral como calado para não parecer estranho.

Diz-me coisas

"- Diz-me coisas.  - O quê?   - Algo só teu. Algo que mostres quem és tu.  - Gosto de vinho tinto e cigarros.  - Não é isso. Mostra-me que estás comigo, que estás aqui. Que não tens barreiras. Que estás livre comigo. Que não te seguro apenas a pele. - Se me pedes a sinfonia, não desfrutas o compasso da musica. Isso nunca vai acontecer. - Porquê?  - Porque aprendi a ser assim. - Então, mente-me... - Um dia, vou ser feliz."

Do dano que corrompe

Quando chove, tudo muda. Há uma tristeza suave que se aninha a nós na sensibilidade obvia de que há sempre algum dano que nos corrompe o interior. Como se pela chuva, a nossa vulnerabilidade fosse abafada por uma reacção química que assola as nossas duvidas e expõe as nossas fracturas. As cicatrizes invisíveis, resistentes ao tempo, avivam-se.  Mas neste turbilhão de nostalgia, a chuva acorda-nos  de uma dor branda que está tão presente quanto a tentamos encobrir com céu limpo. A tormenta é a reflexão que impomos a nós próprios, a clarividência que se abre ante nós. Com a chuva tudo se altera porque vemos sem filtros o que tentamos fingir.  Sentimos sem analgésico a pontada afiada da realidade. A tontura do desinteresse flagrante daqueles a quem verdadeiramente desejamos. E miramos a nossa imagem crua por entre cada pingo frio que cai, com o conforto de saber que a chuva nos aninha a alma, a sós