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Do sofrer



A um minuto da tua presença esquivei-me por entre labaredas que me levavam a fugir para longe, longe demais para saber o nome, datas ou ter memórias.  Não te podia, no entanto, negar porque partilhávamos as mesmas esperanças vãs nestas quatro paredes que nos albergavam e ambos temíamos cada segundo que passava, receosos que o equilíbrio frágil que havíamos inventado sucumbisse ao peso do nosso passado, aos sonhos partidos de que nos alimentávamos.

A música soava baixinho da tua velhinha rádio, lias o jornal, enquanto eu tentava concentrar-me no livro, como se não estivéssemos verdadeiramente ali, pois na realidade andávamos à deriva nos nossos próprios oceanos. Não consigo ainda perceber porque a solidão nos castiga mesmo quando partilhamos o mesmo espaço; será então preferível partir à descoberta do que há para lá de nós, buscar em outras estradas outros destinos incertos que não nos matem lentamente perante aquilo que não vivemos apesar de o parecer?

Teria sido melhor que nunca me tivesses olhado como o fizeste da primeira vez, com aquele sorriso nervoso e expectante. Teria sido melhor que não me tivesses soprado ao ouvido toda a tua vida, não me tivesses feito sentir naturalmente parte dela, não me tivesses acolhido na tua pele que sussurrava o meu nome ao mínimo toque.

Agora impera uma estranha espécie de código impenetrável em que avenidas de avassalador desconhecimento nos colocam frente  a frente mas distantes, para lá de uma qualquer fonte em que no podíamos baptizar e redimir o passado e começar unidos... mas não o fazemos porque não temos passado, não nos lembramos do que fomos porque começámos a existir naquele momento em que nos cruzámos. 

Mesmo assim, não é suficiente, nunca será suficiente porque não temos poderes para abdicar, de sacrificar, de ceder. Somos egoístas, somos obcecados com a não intrusão nos nossos domínios. Temos medo, no fundo. Receamos, preferimos sofrer.


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