Avançar para o conteúdo principal

Do tempo que houve



Houve um tempo em que ele a desejava com certeza, veemência e tentação. Que pegava várias vezes ao dia no telemóvel para lhe ouvir a voz. Para lhe escrever como a queria. Que num flash lhe aparecia a imagem dos seus dedos nos revoltos cabelos negros que a ela caiam sem restrições pelas costas. Que o cheiro dela estava preso em todo ele, alguns dias tão intenso de saudade que a demência rondava.

Houve um tempo em que esticar-lhe a mão, arrebatá-la para o seu peito, deitá-la com leveza nas penas do colchão, era o seu motor enquanto corria, sob chuva, sob frio, sob sol sem clemência. Enquanto bebia copos com amigos noite dentro em tertúlias que o deixavam esgotado por sentir-se tão só.

Houve um tempo em que teria dito tudo que lhe apertava a alma e toldava o ar. O exercício de respirar com aquele peso no peito tornara-se hábito duro, feroz, ardiloso e um massacre com o qual já lidava com facilidade. Teria sido célere libertar-se, houvera dela um sinal de que esperava por ele, que lhe daria caminho se ele lhe desse tempo. Acertaria o ritmo para lhe dar tudo o que antes ninguém dera e que ele próprio se surpreendia a descobrir em si para oferecer.

Mas estava lá, em abundância. Aquela vontade de a proteger, de a fazer sentir-se única e por ela ser preenchido com tantas faíscas que dela emanavam.


Houve um tempo que se alimentou deste intenso abismo. E um dia acordou. Na cama de uma única almofada e esse tempo terminou.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

a importancia do perfume e a duvida existencial do mês

Olá a todos advogo há bastante tempo que colocar perfume exalta a alma; põe-nos bem dispostos e eleva-nos o bom espírito. Há semelhança do relógio e dos óculos de sol, nunca saio de casa sem perfume, colocado consoante a minha disposição, a roupa que visto e o tempo que está. Podem rir-se à vontadinha (me da igual) mas a verdade é que sair de casa sem o perfume (tal como sucedeu hoje) é sempre sinal de sarilhos. nem mesmo umas baforadas à socapa no táxi via uma amostra que tinha na mala (caguei para o taxista) me sossegaram, ate pq não era do perfume que queria usar hoje. E agora voltamos à 2ª parte do Assunto deste email: duvida existencial do mês Porque é que nunca ninguém entrou numa loja do cidadão aos tiros, tipo columbine, totalmente alucinado dos reais cornos? É porque juro que dá imensa vontade. Eu própria me passou pela cabeça mas com a minha jeiteira acabaria por acertar de imediato em mim pp antes de interromper qq coisa ou sequer darem por mim. lembram-se de como era possív

Do acosso

Este calor que se abateu com uma força agressiva consome qualquer resistência.  O suor clandestino esbate vergonha e combate qual sabre as dúvidas.  A noite feita à medida de libertinos cancela as vozes interiores que alertam para mais uma queda dolorosa. A brisa quente atordoa, embriaga no contacto com a pele. O tempo pára, as palavras suspendem entre olhares que sustentam no ar tórrido toda a narrativa; qual pornografia sem mácula, mas plena de pecado. A lua cheia transborda e dá luz à ausência de sanidade que percorre no corpo. Tudo parece possível, uma corrente de liberdade atravessa-nos com o sabor do quente esmagado. E, mesmo assim, pulsa algo mais intenso. Mais derradeiro. Mais dominador. Mais perverso que o toque dos dedos. Mais agressivo que a temperatura irrespirável. O freio da impossibilidade.  A intuição luta com o medo e na arena o medo mesmo que picado tem sempre muita força. O medo acossa-nos.

Os lambe-cus (MEC)

Os Lambe Cus, by Miguel Esteves Cardoso   "Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele. Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá- los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia. Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alun