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último copo de vinho

Deitou-se na cama, confortável no peso do edredon. Viu um a um, cada album de fotografias. Tinha terminado de colocar as fotos que transitaram da era digital para a versão real e o guião da noite seria aquele.

Com um copo de vinho tinto como companhia, viu com exactidão e mirada saudosa, cada um dos momentos que ficaram presos no retrato. Tanta história, tantos momentos, gargalhadas suspensas num papel, das quais já não se ouvia sequer o som, risos e alegria. A vida mudara, a pessoa nas fotografias mantinha-se igual ao que fora. Mas não se reconhecia no espelho. O que era perdera visibilidade e estava enterrada dentro de si.

Fotos e fotos de viagens. Trabalhara para as férias, durante anos. Aceitara um emprego muito bem pago, que aprendera a não gostar, onde a falta de respeito imperava, em troca do prazer da boa vida. Preferia aeroportos a restaurantes, hotéis a um sofá novo, ir sozinha do que ficar acompanhada.

Com o passar dos expedientes, menos tolerava o que lhe pagava as extravagâncias mas pelo meio veio a crise. A nova ordem ditada pelos mercados e agências de rating obrigou a mudar de rotinas, passou por vários empregos, foi descendo o salário e a satisfação. Deparou-se com organizações que primavam pelo caos, sentindo a claustrofobia e o desassossego. Os dias passavam, iguais, ansiosos. 

As férias pararam. Os prazeres de um gelado ou de um livro tornaram-se impossíveis. O medo passou a dominar a cada fôlego, a capacidade de dar-se com outros foi-se esvaziando, gradualmente a solidão ganhou o seu espaço e vivia nele e para ele. Nas ruas reclamava-se contra a situação económica, isolou-se em casa, longe dos ruídos, próximo do silêncio e do abandono. 

Reviu com um sorriso egnimático (seria triste?) o álbum dos amigos, os que restaram, os que desapareceram, os que lhe fizeram nódoas negras, os que prosperam e tiveram vidas bem sucedidas. Teve saudades de tempos de inocência, de noitadas, de dançar até de madrugada, de acreditar nas pessoas, de ter expectativa num futuro brilhante. 

Sentiu os olhos a perderem força, a querem fechar-se. Arrumou os álbuns de modo meticuloso e acomodou-se com sensação de dever cumprido. Acabou o vinho no copo e deixou as 5 caixas de comprimidos fazerem o efeito que há tanto esperava. 

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