Avançar para o conteúdo principal

A Mãe





Dedicado às "mães" da minha vida: 
              
              Sis, Rita, Sofia, Marta, Lina, Catarina Z., Ana Amado, Diva Ana.

_______________________________________________________

Nunca considerou que verdadeiramente conhecera a sua mãe. Lembrava-se de brincar com ela em pequena, a chapinharem na praia, o sol quente a iluminar o cabelo ruivo da mãe. 

As memórias, no entanto, desvaneciam-se à medida que na vida da mãe se tornara mais importante o álcool e as drogas.

Na adolescência cresceu com o avô, o pai e o irmão. Só via a mãe pontualmente, caso esta aparecesse de surpresa para visitas que se resumiam a três dias a dormir, com tremores de ressaca e sedada, pelos tranquilizantes. Viu-a, pela última vez, aos 14 anos. Ou melhor, teve um vislumbre da figura materna, de roupão verde escuro em torno do corpo magro, consumido, cabelo desalinhado e uma pele esquálida. Estava sentada de frente para a janela de cigarro a queimar quase até ao fim, perdida. Não reparou nela e para o resto da vida acreditou que a mãe há muito que se esquecera que existia. Que em algum momento, a tivera nos braços, embalando-a.

Viveu com o triunvirato masculino até ir para a faculdade, em Inglaterra, onde ficou a trabalhar. Regressou com 25 anos, pragmática, assertiva e pouco orientada à vida burguesa. 

A mãe, depois de dividas ao jogo e aos traficantes, com direito a várias sovas, fugira para a Argentina e vivia com um figura proeminente da sociedade de Buenos Aires, um excêntrico endinheirado adepto da cocaína. 

Ela nunca casou, nunca quis ter filhos. Nunca calhou ter esse instinto. No fundo receava que pudesse vir a ser um fracasso na maternidade, tal como a mãe fora. Optou por uma independência de mala de viagem na mão, sempre disponível para "ir". Quando era para "estar", estava só. 

Acompanhou os amigos a passarem à fase de respeitáveis pais de família e as amigas a trocarem as saídas à noite e os copos, pelas histórias para dormir e os biberões. Foi tia, ainda cedo. O irmão, em três casamentos, reuniu uma prole de cinco crianças. Adorava-os. Mimava-os. Mas não havia apelo. 

Aos 38 anos, numa relação recente com um actor afamado, 8 anos mais novo, engravidou. Sem o querer. Sem estar a contar. Sentada no bordo da banheira com o teste "infalível" comprado na farmácia mais longe de si que encontrou, convicta que o seu problema era pré-menopausa, olhava incrédula para o aparelho que dizia "SIM". Que gritava sem voz, "grávida". 

Queria chorar, de pânico. Queria voltar para a cama, adormecer e acordar do pesadelo. Queria bater no namorado, expulsá-lo da cama onde dormia, de casa e da sua vida. Era uma intrusão, o que tinham gerado. Porém, calou-se. Tomou um banho, ligou à cunhada numero três, médica, e num café da Avenida de Roma discutiram como se processava um aborto. A cunhada, racionalmente, explicou-lhe todos os passos. No fim, abraçou-a, elogiou-lhe a recém adquirida beleza e olhar brilhantes e disse-lhe, sem pejo, que seria uma boa mãe. 

Depois de ignorar as várias chamadas do namorado, desligou o telemóvel e correu mais de uma hora, ao longo do Rio, no Parque Expo. O frio cortava-lhe o rosto. A dor nas pernas não a impedia de pensar e repensar sobre o que lhe caíra em cima. Odiava-se. E corria mais para castigar-se. 

Ao fim do dia, em casa, com uma chávena de café quente na mão, comunicou ao namorado o que se passava, deixando-lhe a porta aberta para não continuar naquela história. Dois dias depois, com discussões à mistura, indecisão na sua cabeça, muitos "amo-te" a ecoarem pela casa, ela levantou-se e foi ao quarto de hóspedes para, mentalmente, conceber como o transformaria num berçário.

E, assim, começou, com o namorado, rapida e romanticamente transformado em marido, numa conservatória de Lisboa, a aventura "bebé" a bordo. Ela foi de vestido pelo joelho, vaporoso, cor de caramelo, um casaco de cashemere bege escuro e uns sapatos cor fuchsia, caros, de marca, com 8 cm. de salto. Era dia festa, havia que estar no seu melhor.

Estavam sós e em seguida comeram no Great American Disaster, pelos hamburgueres, mesmo com o mau serviço. Sob chuva forte, correram para a clínica onde iam fazer a primeira ecografia.

Até ao fim, não quis saber o sexo da herança que lá vinha. Estranhou, e derramou lágrimas, quando o corpo mudou. Não abandonou os saltos, mas começou a usar mais bailarinas. Manteve-se fã de café, mas bebia mais agua e chá. Não tinha vontade de ir para noitadas mas continuava com as rotinas de jantares e longos passeios nocturnos, à medida que a primavera ganhava espaço. 

Emocionou-se, à séria, quando o marido lhe ofereceu, para o bebé, um mini-roupão de banho azul e branco e uma manta em tons de areia. 

Pouco a pouco, apaixonou-se pelo "projecto" como lhe chamava. Vibrava com as idas às compras, comandava as obras no quarto, controlava o peso e era pontual nas consultas. Leu tudo o que podia, fez a ginástica mais adequada, preparou os detalhes com antecedência.

As águas rebentaram-lhe quando já estava no hospital, à espera para uma cesariana. Esteve sempre sozinha, a seu pedido, quando Maria nasceu. Colocaram-lha, limpa e ansiosa com a fria realidade fora do ventre, nos seus braços. E uma explosão de sentimentos rebentou de uma só vez. Num golpe de asa, o mundo passou a ser aquela cama e elas as duas. Sentiu-se completa, imensamente feliz, a transbordar de bem-estar. 

Maria estava em casa quase há um mês quando, num instante, foi ao cemitério levar flores à campa da mãe, coisa que nunca havia feito desde que a mãe morrera. Aceitou que a mãe lhe negara amor por não gostar de ninguém, nem de si própria. Fez as pazes com aquele capitulo. Fechou o livro. 

No regresso, sentou-se na cadeira de baloiço, com Maria ao colo, tão pequena, com o seu cheiro perfeito a bebé e a pó de talco. Tinha um olhar curioso e carinhoso que a conquistava com naturalidade. Amava intensamente aquele pequeno ser sem cabelo. 

Encostou-a mais contra si e beijou-a, ao de leve, no silêncio. Sabia que, agora, a vida ganhara verdadeiros contornos de cor. Estavam ambas a começar. Juntas. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

a importancia do perfume e a duvida existencial do mês

Olá a todos advogo há bastante tempo que colocar perfume exalta a alma; põe-nos bem dispostos e eleva-nos o bom espírito. Há semelhança do relógio e dos óculos de sol, nunca saio de casa sem perfume, colocado consoante a minha disposição, a roupa que visto e o tempo que está. Podem rir-se à vontadinha (me da igual) mas a verdade é que sair de casa sem o perfume (tal como sucedeu hoje) é sempre sinal de sarilhos. nem mesmo umas baforadas à socapa no táxi via uma amostra que tinha na mala (caguei para o taxista) me sossegaram, ate pq não era do perfume que queria usar hoje. E agora voltamos à 2ª parte do Assunto deste email: duvida existencial do mês Porque é que nunca ninguém entrou numa loja do cidadão aos tiros, tipo columbine, totalmente alucinado dos reais cornos? É porque juro que dá imensa vontade. Eu própria me passou pela cabeça mas com a minha jeiteira acabaria por acertar de imediato em mim pp antes de interromper qq coisa ou sequer darem por mim. lembram-se de como era possív

Do acosso

Este calor que se abateu com uma força agressiva consome qualquer resistência.  O suor clandestino esbate vergonha e combate qual sabre as dúvidas.  A noite feita à medida de libertinos cancela as vozes interiores que alertam para mais uma queda dolorosa. A brisa quente atordoa, embriaga no contacto com a pele. O tempo pára, as palavras suspendem entre olhares que sustentam no ar tórrido toda a narrativa; qual pornografia sem mácula, mas plena de pecado. A lua cheia transborda e dá luz à ausência de sanidade que percorre no corpo. Tudo parece possível, uma corrente de liberdade atravessa-nos com o sabor do quente esmagado. E, mesmo assim, pulsa algo mais intenso. Mais derradeiro. Mais dominador. Mais perverso que o toque dos dedos. Mais agressivo que a temperatura irrespirável. O freio da impossibilidade.  A intuição luta com o medo e na arena o medo mesmo que picado tem sempre muita força. O medo acossa-nos.

Os lambe-cus (MEC)

Os Lambe Cus, by Miguel Esteves Cardoso   "Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele. Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá- los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia. Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alun