Avançar para o conteúdo principal

A Viagem

Ela fingiu estar ainda a dormir, enquanto ele deambulava devagar e em silêncio pelo quarto, recolhendo as coisas. Susteve a respiração, deixou-se estar quieta sabendo que estava à beira das lágrimas. 

Ele estava de partida, viagem de trabalho, segundo o eufemismo. Ela sabia que ele não regressaria. Daí a um mês estaria a recolher o que ele deixasse em casa, para pôr numa caixa de cartão que ele apanharia num dia em que ela não estivesse em casa. Sabia-o.

O amor que lhe tinha não fora suficiente para aguentar tantos danos no casco. A distância física era mínima no dia-a-dia mas tremenda na ligação que haviam desenhado. Não falavam, ela isolava-se na sua solidão, ele estava presente sempre com a mente a vaguear por uma vida mais aventureira, bem disposta, que aproveitasse a época dos 30 que havia de findar.

Ele sentou-se ao lado dela e observou-a a dormir. O cabelo algo transpirado colava-se ao rosto, um rosto antes alegre e cheio de paixão, agora sempre contido e envelhecido. Mantinha os mesmos traços que o tinham levado a amá-la intensamente, contra família e amigos. Ganhara muitos quilos. E amargura. Lutava contra tristeza em vão, já sozinha porque ele desistira, impotente, de a ajudar. 

Amava-a, ainda. As suas mãos carinhosas a passar-lhe no rosto, despertavam-lhe o desejo. Mesmo assim, descobrira outras mulheres. De bem com vida, vaidosas do look tentador, cheias de sal no corpo bronzeado. Os amigos avisaram-no: iria deixar-se seduzir por essa renovada energia e já não voltaria atrás.

Depositou-le um beijo cheio de saudade, de agradecimento e de cobardia, na testa, e preparou-se para sair. Não iria voltar. Queria ser feliz e o refugio que haviam sido aqueles anos, já não lho permitia.


Sabia que não voltaria  a ser amado como fora, por ela. Mas o cliché do vazio entre ambos e o desnorte do abandono a que ela se deixara abater vieram cedo de mais. Era algo muito forte. Como numa metáfora, o peso dela tornara-a o ambiente muito denso.


Ela ouviu a porta fechar, devagar. Esvaziou a mente. Preparou-se para voltar a dormir. Antes, de forma avassaladora, chorou. Estava, de facto, só. 

Comentários

Tigrão disse…
Tantan!

Mensagens populares deste blogue

Devo ser a unica mulher

Que gosta do Mr. Big. Pois que gosto.  Enquanto a Carrie era uma tonta sempre à procura de validação e de "sinais", a complicar, a remoer, ser gaja portanto, o Mr. BIG imperfeito as may be era divertido, charmoso, sedutor, seguro (o possível dentro do género dos homens, claro), pragmático.  E sempre adorou aquela tresloucada acompanhada de outras gajas ainda mais gajas e mais loucas.  Fugiu no dia do casamento? Pois foi. Mas casaram, não casaram? Deu-lhe o closet e um diamante negro.  Eu gosto mesmo muito do Mr. BIG. Alguma vez o panhonhas classe media do Steve? Ou o careca judeu que andava nu em casa? Por Sta. Prada, naooooooooo! 

I used to love it...

Do acosso

Este calor que se abateu com uma força agressiva consome qualquer resistência.  O suor clandestino esbate vergonha e combate qual sabre as dúvidas.  A noite feita à medida de libertinos cancela as vozes interiores que alertam para mais uma queda dolorosa. A brisa quente atordoa, embriaga no contacto com a pele. O tempo pára, as palavras suspendem entre olhares que sustentam no ar tórrido toda a narrativa; qual pornografia sem mácula, mas plena de pecado. A lua cheia transborda e dá luz à ausência de sanidade que percorre no corpo. Tudo parece possível, uma corrente de liberdade atravessa-nos com o sabor do quente esmagado. E, mesmo assim, pulsa algo mais intenso. Mais derradeiro. Mais dominador. Mais perverso que o toque dos dedos. Mais agressivo que a temperatura irrespirável. O freio da impossibilidade.  A intuição luta com o medo e na arena o medo mesmo que picado tem sempre muita força. O medo acossa-nos.