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Do gostar fora de tempo



"Gosto de ti", disse-lhe ele em murmurio quando ela adormeceu no sofá, depois de mais uma longa noite de conversas e desabafos. 

Tapou-a com uma manta como se fosse o seu corpo a protegê-la de todos os invernos árduas que a fustigavam.

 "Gosto de ti", repetiu enquanto acendia um cigarro, se sentava e optava por deixar a musica seguir o seu curso, em tom baixo, meigo, quase triste. 

Ficou a vê-la respirar devagar e pensou nos anos que levava naquela suave contemplação, sabê-la perto ou mais distante, nos braços de outros, sem que nada abalasse aquela sua vontade de a tomar para si, sentir o cheiro do cabelo e suavizar-lhe os gestos tão controlados, tão desapegados e distantes das emoções. Aprendera a amar outras, a receber delas longo carinho, a sentir-se em paz. 

Mas havia sempre aquela imagem que não o deixava sossegar daqueles olhos negros, expressivos, do cigarro a brincar na ponta dos dedos nervosos, do sorriso contido ainda que mordaz.

 "Gosto de ti", admitiu, por fim, depois de tantas mudanças de estação a negar o que lhe queimava o peito sempre que ela enchia uma sala.

Era tarde - era madrugada dentro e já tardava na vida. Era um gostar para sempre mas fora de tempo.

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