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Um grande tudo único

via @thegfeboudoir

Tocou-me no pescoço com a ponta dos dedos, desviou com um  gesto macio a madeixa que lhe tapava o caminho e beijou-me com lábios quentes, como se me possuísse naquele momento. Bastava senti-lo perto e ficava pronta a recebê-lo. E ele estava muito perto, na mesma cama onde havíamos caído horas antes para mais uma vez nos perdermos. Terminávamos sempre por nos achar nos braços um do outro. Eu encontrava uma calma momentânea que seguia ao rebuliço que ele provocava. Nunca chegarei a descobrir o que ele encontrava, para além da ternura infindável em que adormecia. Exausto, sucumbia com facilidade sob as carícias que lhe fazia no cabelo ou as massagens suaves nas costas.

Abraçou-me por trás e prendeu-me as pernas, ainda que soubesse que eu não iria fugir. Eu escondia sempre todas as emoções que ele suscitava em mim, mas ele tinha consciência que dominava os meus sentidos, da mesma forma como dominava todos os aspectos da sua vida, como dominava as conversas em que entrava. Como controlava o que sentia, nunca revelando.

Dois amantes passionais e breves que davam tudo no combate mas que nunca abriam a fachada. Jamais saberia o que ele sentia por mim. Ele não o mostrava.

Ora me acolhia com real prazer exibido sem pudor, acariciando-me a alma com o modo delicioso como me olhava, transmitindo tanta esperança em cada beijo depositado na minha boca e como me embalava ao meu ritmo, acabando aninhado, inconsciente, no meu colo. Ora desaparecia, sem rasto, num autêntico acto de crueldade, exprimindo ou dúvidas, ou culpa, ou indiferença, revelando, a mim,  o quão supérflua sou numa vida organizada em torno dele mesmo e de quem com ele partilha mais do que instantes apaixonados.

E eu sem me conseguir desligar. Sem deixar de ceder. Sem deixar de ter a vontade de ver nascer o dia, nua, deitada sobre ele, na janela do meu quarto que dá para o Tejo. E ele pegava na minha mão, pequena na dele, e puxava-me para ele: “Vamos, miúda, vem dormir”, e eu a teimar a ficar ali, a guardar aquela luz para as noites em que adormecia sozinha sem ousar pensar onde ele estaria nesses momentos.

Não o vivia com a intensidade do meu primeiro amor, como o primeiro não há outro. Tão sofrido, tão meu, tão diariamente sentido. As saudades que praticamente me puseram louca, o estado de sombra pálida em que me havia tornado, o desalento, eram cenas de um cenário já longínquo ainda que apertado em mim.

Não, este era o espaço que deixei uma paixão ganhar após o luto prolongado em que retemperei forças. De uma atracção feroz, com desejo mal contido a clamar por satisfação urgente, aliada a gargalhadas e conversas que acabavam em roupa caída à medida que a vontade se tornava avassaladora, progrediu para um estado mais apurado de envolvimento. Precisava de estar com ele, por me sentir confortável na presença dele, ainda que ao mesmo tão mal, porque era sempre disfarçado, com olhares à distância. 

Adorava repousar naqueles braços tão preparados para me receber, a tremer, com mãos experientes e carinhosas a comprimir-me contra o peito dele, dois corpos suados, sedentos e conhecedores um do outro. Navegávamos ao mesmo ritmo, pela noite dentro, sempre com música a tocar para que não estivéssemos tão sozinhos, a dar a ilusão que realmente algo mais existia para lá dos encontros à laia de escapadelas, cada vez mais intensos, cada vez mais recorrentes mas que cada vez mais eu vivia como se fossem os últimos.

Temia sempre ser a última oportunidade de me encostar àquele corpo que se tornara familiar, àquela voz que cantava baixinho as músicas que eu tanto gostava, sabendo que isso me deixava tranquila e calma. Sempre que estávamos juntos, achava que ele não iria sucumbir e vivia uma luta entre manter a pose serena e dissimular a ansiedade por o ver partir sem mim. Conseguia seduzi-lo mas a novidade esgotara-se e estava em constante alerta para o momento de ele se esgotar de mim. Ele já tinha quem o completava, em mim encontrava apenas uma paixão derrubadora que não era alicerce de coisa alguma.

Procurou a minha boca e beijou-me devagar, para me despertar. Daqui a pouco já estaria em cima dele, a consumi-lo em doses mais rápidas, tentando mostrar-lhe o quanto eram importantes aqueles minutos que davam lugar a horas, parecendo sempre pouco.

Fitei-o com a minha agressividade natural, a mesma que tenta esconder as fendas que ele abriu no dia em que o deixei aproximar-se. A minha bravata face à ousadia dele saiu-me cara e eu pagava mais uma rodada num balcão já gasto de histórias tão erradas como constantes.

Fingiu-se assustado. Riu-se em seguida e abraçou-me com tanto carinho que jurei poder ser verdadeiro. «Lá estás tu longe daqui! Diz-me!». «Não é nada», respondi, beijando-lhe os olhos em cuja claridade me via reflectida, solta. «Cheiras bem!», aquele aroma que se colou a mim e que já não conseguia esquecer.

«Mais uma fuga à conversa», puxou-me mais com a determinação de um conquistador. «Em que pensas?»

«Nada, a sério», beijei-lhe o peito com a intensidade que enchia as medidas aos dois e ele repousou a necessidade de me ter outra vez, dando-me a mão, cruzando os dedos com os meus de forma tão erótica como nossa, como se fossemos heróis de um filme. Não era nada de especial, era um grande tudo único. Era uma sucessão de instantes cortados por conversas até de madrugada com cigarros a iluminar os vários panos de fundo que nos foram acolhendo em noites sucessivas mas interrompidas.

Devia ter parado algures. Devia ter cedido ao meu orgulho, exigir a plenitude, demandar a presença e não deixar passar muda e queda a ausência. Mas todas as questões que assomavam na minha mente eram afastadas com o toque do telefone, com os concertos, com os fins-de-semana pelo país. As minhas inquietações, as noites mal dormidas a remoer o mal que me andava a fazer, eram amenizadas quando ele regressava com uma banda nova que descobrira, sorriso matreiro que se encostava  no meu cabelo para depositar um sussurro em que soltava o meu nome. Não era capaz de o afastar; sem pesos de consciência recebia-o à minha maneira, com esperança que fosse novamente bom.

Habituei-me a que depois se retirasse para o seu mundo. Eu ficava à deriva. Odiava-o Rasgava os bilhetes das peças de teatro, os cartões dos restaurantes, apagava os emails. Saía com outros, cheguei a partilhar a cama com amantes antigos, outros novos. Nunca lhe disse ele também não se preocupou. Ficava tudo bem: ele voltava com conversa rápida, nervosa e eu expectante por o ter ali, senti-lo dentro de mim como da primeira vez, na praia. Rasgos de felicidade à socapa, soltos como gemidos, que furavam a minha postura distante e egoísta. O olhar endurecera ainda mais perante a constatação de como tudo era efémero. E cerrava as fileiras perante ele para que não percebesse como tinha significado e, ao mesmo tempo, era tão simples, como o génio da Maria João Pires que eu ouvia sem cessar e que ele aprendeu a gostar.

“Gosto de ter aqui”, pensei, receosa que a força desse sentimento fosse de tal modo forte que se ouvisse fora de mim. “Gosto do sabor da tua pele contra o meu calor e como desapareço quando te fechas sobre mim”.

«Em que pensas?», volta ele a perguntar sem desistir, mas já sem esperar resposta, enquanto me revolve o cabelo, me beija os mamilos, fazendo-me arquear as costas em mais um abandono de prazer. Não respondi, observei-o com deleite, enquanto de olhos fechados ele me percorria o corpo com ardor, a sofrer por estar prestes a terminar.

E eu sem poder responder. Encostei-me mais a ele quando me procurou, a lua entrava de mansinho pela janela do quarto, de braço dado com a brisa que refrescava a divisão. Abri de novo os olhos e fixei-os no espelho colocado à frente da cama com lençóis perdidos e onde consegui ver a espiral de incertezas, nó na garganta, arrepios na espinha e solidão.

Foi essa solidão que ficou quando ele saiu, horas depois. Com esse tecido pesado e transparente colado a mim, aninhei-me num canto da cama, no total silêncio. Deixei-me estar assim, isolada de tudo durante dias, acompanhada apenas da minha própria força. Não chorei, não me vesti, fumei, mal comi, embrulhada em recordações num processo de desintoxicação emocional. Revi as fotografias coladas num único álbum, escondido num armário e pensei no quanto tempo me afundei em momentos em vez de viver. Por fim, tomei um banho demorado, coloquei The National na aparelhagem, com as músicas de tom optimista e da cor de um sorriso qualquer, e nunca mais te vi. Quase não insististe para regressar ou porque percebeste que eu tinha atingido o limite da minha paixão por ti ou porque não te apeteceu recuperar-me.


Foi mesmo efémero. Foi duro. Foi um corte em mim, um que sabias sempre sarar. A ferida agora está aberta. Mais outra. Talvez a última.

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