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Lisboa iluminada

O trânsito em Lisboa é um verdadeiro caos. Tal como em qualquer grande cidade. Todavia, o stress induzido pelo número de carros que se cruzam diariamente tem, em Lisboa, um efeito por demais pernicioso, ao afastar a atenção de todos aqueles que desesperam da verdadeira magia da cidade. Não permite que se perceba a luz que irradia, o brilho característico que atravessa séculos de fama e paixões assolapadas vividas em becos e vielas de calçadas gastas, mulheres desafiadoras na sua longa tradição de subserviência, o fado em cada madrugada de sentimentos, em cada nascer de dia reflectido no mais belo Tejo.

Pela janela do quarto em que o Sol madrugador entrava sem pudor, ela olhou intensamente o dia que ganhava forma através de um frio outonal cortante e do movimento conturbado que sacudia as ruas. Aninhou-se ainda mais contra o vidro, aqueceu-se com as imagens que lhe preenchiam a mente, recordando-se de como na noite que findara  se sentira completa como nunca antes, se perdera nas deambulações dos dois corpos que sem fim se haviam tocado, embalada depois num cansaço tranquilizante, num conforto d´alma, num sono abraçado por ele, por entre lençóis desalinhados.

O café escaldante enchia o ar daquele aroma por ambos partilhado e dava-lhe o ânimo matinal de que ela tanto carecia. Sentia-se adormecida por demasiadas contemplações. Toda a crueldade e frieza que compunham a sua natureza atípica pareciam ter-se desvanecido e ela já sentia a melancolia de saber que em breve teria novamente que envergá-las, assim que voltasse à realidade.

Fazia-se tarde. O resto do mundo não parara o relógio. Apenas os ponteiros naquele quarto haviam cessado como inesperado presente entregue em bandeja de prata. Porém, fora efémero e havia agora que retomar de novo a sua pele, abandonar o estado de espírito que até então dominara, iluminado por 1001 estrelas que haviam acompanhado o encontro de dois desconhecidos em perfeita harmonia.

Naquela noite, ela traíra-o. Deixara-o ver uma outra personagem que se soltara do seu interior, que se dera sem restrições, criando a expectativa de que também se podia envolver, sentir, chorar de prazer. Naquele jogo de toques quem iludia quem parecia não importar- haviam-se cruzado, comungaram do mesmo sortilégio, exteriorizaram em paralelo toda a força que cada um gozava e que se acumulava, escapando ambos como dois cavalos arredios, soltos por campos por mais ninguém conhecidos e com percursos incertos.

Sentiu uma vontade louca de fumar. Na pequena varanda deixou-se sentar no banco de jardim e por entre o afã que se vivia lá em baixo e a confusão que inundava a cabeça dela, em baforadas rápidas consumiu um cigarro sem piedade. Receava que ele aparecesse e a rodeasse, mais uma vez, de tudo o que lhe oferecia em cada novo instante, deixando-a como que vazia por não saber como corresponder, como se devia comportar, como transmitir um pouco de calor. Tamanha grandiosidade de afectos deixava-a paralisada.

Voltou a entrar e procurou as suas roupas. Sem fazer barulho, tomou um banho rápido e frio, torturando a derme com um bálsamo apaziguador. Já pronta para o embate do quotidiano, preparava-se para sair quando aquela proximidade a cercou e a ela se colou de modo dolente. Pressentia que podia desfalecer atordoada que estava por o sentir ali, naquele espaço que só a eles pertencia, que só a eles interessava.

Ceder implicava alienar-se da carapaça que criara para si. Resistir era perder a ternura daqueles olhos postos nela com tamanho significado. Lutava entre o que era e o que podia ser. Degladiava-se por entre certezas e emoções. Dividia-se entre ela e ele.

Um beijo apenas desequilibrou as forças. Um só sinal enredou-a nos braços dele, tendo-o permitido que a amparasse naquela onda de loucura. Sucumbiram uma outra vez, obrigando-a, por ora, a abandonar-se aquela sorte de sabores e gemidos sustidos por tantas dúvidas que a assolavam.

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